1.
Foi uma vereadora da Câmara de Évora quem me contou a história.
Florbela Fernandes não se cansa de falar da sua irmã, do que ela é, no que ela se tornou, no seu inspirador exemplo.
Conto-te agora como ela me contou.
Manuela Fernandes, tem 54 anos.
Mas esta história começa no dia a seguir ao Natal, no ano em que completara 36.
Era uma mulher viva e bem-humorada.
Bonita.
Solteira por convicção.
Com um gato e sem carta de condução.
E à espera de uma entrevista para mudar de emprego.
2.
No dia 26 de dezembro, depois de um Natal normal, foi às urgências do Hospital de Évora com dores abdominais, febre e falta de ar.
Três dias depois entrou em septicemia.
Os seus órgãos começaram a falhar como se fossem cartas num baralho. Ficou em coma.
Nenhum dos médicos de serviço soube o que fazer ou dizer.
Na véspera de Ano Novo pediram à família para se despedir, Manuela tinha poucos minutos de vida, informaram. A irmã Florbela gritou com toda a gente, não era possível que ninguém fizesse nada.
Insistiram que o fígado deixara de responder, Manuela chegara ao fim.
3.
A irmã Florbela saiu do hospital para ir buscar a última muda de roupa da irmã.
E esperou em lágrimas pelo telefonema do hospital.
Que não chegou.
Manuela reagira a quatro paragens do coração, mas não morreu.
Tanto em Évora como já no São José ninguém deu resposta sobre o que gerara aquela situação e ainda menos sobre a incrível capacidade de Manuela resistir à morte.
Transferiram-na para o antigo Hospital do Desterro, em Lisboa. No serviço de Cuidados Intensivos comprometeram-se a salvá-la e a remediar uma situação que não fora bem gerida.
Manuela salvou-se, mas com marcas para sempre.
Aos 36 anos viu-se sem as duas pernas, sem uma parte de todos os dedos das mãos e com dezenas de cicatrizes que lhe ficaram de várias intervenções nos dois anos em que esteve internada.
4.
Manuela processou os que, na sua opinião, foram os responsáveis por uma grave negligência médica.
Esteve 15 anos à espera de ser chamada pelo tribunal, mas nunca desistiu. Alguns dos médicos que a salvaram convenceram-na a que não desistisse.
Há uns poucos meses foi, por fim, chamada para prestar declarações a um juiz.
O processo foi aberto.
Quinze anos em que não se limitou a ficar à espera.
Tirou a carta de condução para manter a autonomia.
Adaptou-se em tempo recorde às próteses.
Casou.
Arranjou um emprego que ainda mantém.
E já não tem o gato que amava.
Agora tem seis gatos.
Mais o marido.
E um futuro em que continua a acreditar.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e RTP Play.