No regresso a Cem Soldos, dois anos após a última edição do BONS SONS, uma ternura especial emana de quem já percorre a aldeia. Está nos olhos, que fitam um largo renovado e ligeiras mudanças desde 2022, e sobretudo nos passos, voltando a calcorrear as praças e as ruelas de um espaço que durante quatro dias – aviso de cliché iminente – é seu também. Mas os clichés existem por uma razão: para serem desconstruídos, como o BONS SONS faz questão de demonstrar. Se há uma vocação familiar, também há uma rejeição de qualquer ideia feita sobre uma aldeia inócua e provinciana – e a programação, imprevisível como sempre, é o maior argumento em seu favor.
À tarde em Cem Soldos
Femme Falafel é exemplo disso. Após o arranque atmosférico do guitarrista Manuel Dordio no Palco Carlos Paredes (dentro da Igreja de São Sebastião), a vencedora do Festival Termómetro – Raquel Pimpão é o seu nome verdadeiro – trouxe a sua proposta de pop alternativa. Canções orelhudas, como “Depressão”, que procuram o humor autodepreciativo, a honestidade impiedosa e os arranjos fora da caixa. É no Palco Giacometti-INATEL, o eterno Coreto, que a energia de festival começa a ferver, perante músicos que esperamos ver crescer nos próximos anos (Lana Gasparotti, que acompanhou Pimpão nas teclas, é também uma promessa a solo).
Mais reservado e denso, não menos forte, foi o concerto de Diana Combo. O novo Palco MPAGDP (A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria), junto ao curral da aldeia, recebeu uma estudiosa do Portugal rural e profundo, cujas melodias são parte central do seu repertório (graças ao arquivo da MPAGDP, bem como às recolhas de Michel Giacometti). Gravações de campo e vinil poeirento mas não obsoleto, alguma da matéria-prima, a par da música andalusí, que se propagou por toda a Península Ibérica quando estava sob domínio muçulmano. Tão hipnotizante que, ao fim de um momento quase solene, Combo deixa um aviso à navegação: “O lamento vai estar agora presente durante algum tempo” – ou não fosse música portuguesa.
Teatro musical e o arraial de Cláudia Pascoal
O rock gingão e soalheiro dos Zarco, entre temas como “Cidade Safari”e “Vitamina Z” (com toques de Jorge Palma), tomou conta do Palco Lopes-Graça ao fim de tarde. Ao crepúsculo, Cem Soldos tornou-se a mais recente paragem da digressão de “Quis Saber Quem Sou – Um Concerto Teatral”. Feitas as devidas adaptações para o Palco Zeca Afonso, o público assistiu à criação de Pedro Penim com direção musical de Filipe Sambado ora atónito, ora em êxtase. “Tudo isto não passa da interpretação de um sonho”, avisou o coro em uníssono: um sonho de democracia e reivindicação, das palavras de ordem que mais não podem ser adiadas.
“A minha língua é a citação”, ouviu-se noutro momento, e é o mote perfeito para um espetáculo que faz seus os versos de toda a parte: desde as vozes de Abril (José Mário Branco, tanto a solo como no GAC; Fausto; José Afonso, é claro) aos trovadores de hoje (B Fachada), passando pela canção de protesto norte-americana de Woody Guthrie, e geografias irmãs de Portugal, com os cabo-verdianos Tubarões (“Labanta Braço”) e os angolanos Duo Ouro Negro, assim como o brasileiro Belchior. “Esta é sobre a ditadura brasileira”, esclareceram no começo do tema “Como Nossos Pais”: “Não há aqui purismos”.
Quase duas horas de espetáculo depois, era tempo de Ganso no Palco António Variações, que fazem rock sereno, como quem sonha acordado. Cláudia Pascoal não dá hipótese para tanta reflexão, tomando de assalto o Palco Lopes-Graça com um baile de verão: a cenografia faz-se de grinaldas de luzes e festão, além de um duche (aparentemente funcional), dálmatas de loiça e um frigorífico. Um telefone vermelho serviu para chamar Manuela Azevedo, presente não em corpo mas em som, para o dueto “Precaução”. Acompanhada pelos instrumentistas António Miguel (Metamito) e André Soares, Pascoal percorreu um alinhamento todo-o-terreno.
Da sua participação no Festival da Canção 2023 (“Nasci Maria”) a jingles radiofónicos, de um medley de “Pedra Filosofal” de Manuel Freire e “O Pastor” de Madredeus à recente colaboração de Pascoal com Mike El Nite e Rebeca. Há bailarico, sim, mas também há a carta de amor de “Oh Mãe”, e uma interpretação da tradicional “Oliveirinha da Serra” com a voz sintetizada por vocoder. As contradições e o humor permeiam o concerto, aproximando-o de um programa de variedades, deixando evidente que Pascoal não joga pelas regras mais sisudas dos concertos – o público agradece e o BONS SONS encoraja-o.
Ouça a primeira de quatro emissões especiais da Antena 1 no BONS SONS.