1.
O Chat GPT escolheu as cidades mais feias de Portugal. Fê-lo certamente com critérios inquebrantáveis, científicos, de puro bom senso, de algoritmos perfeitos, uma espécie de robô de cozinha que mistura os ingredientes certos nas doses perfeitas.
A Amadora que está habituada a nada ganhar desta vez ganhou mesmo.
É oficialmente a cidade mais feia do país.
Escolhida pela inteligência artificial que tudo mede menos o que mais me interessa.
2.
Nunca vivi na Amadora, mas conheço-a bem.
É um dos lugares da minha vida, um lugar de mistura de gente, de cultura, de sonho e criatividade, de sobrevivência também, de sofrimento e combate.
Os robôs não sabem dançar.
Porque se soubessem fazê-lo teriam conhecido a Danceteria no Lido.
Os robôs não têm paladar ou olfato.
Se o tivessem teriam provado as tostas mistas do Papalagui e os croissants do Babilónia, cheirado o milho assado nos bairros negros, comprado os orégãos e beldroegas alentejanas à venda na estação de comboios.
3.
Os robots não têm sentimentos.
Se os tivessem ter-se-iam comovido com os miúdos a jogar à bola na rua, com os voluntários do Moinho da Juventude a salvarem todos os dias gente sem esperança, com as peixeiras à entrada no bairro de Santa Filomena.
Os robots não sabem avaliar a exceção, explicar a razão para tantas pessoas marcante terem nascido num sítio tão horrível.
Se o soubesse conheceriam Tiago Rodrigues, a maior figura do teatro português, diretor do Festival de Avignon.
Jorge Pité, o professor que influenciou centenas de alunos na Amadora, tão amado como o “Capitão” Keating no Clube dos Poetas Mortas.
Fernando Piteira Santos, um dos pais da nossa democracia.
Também Jorge Jesus, o puto do bairro da Reboleira que saiu para conquistar o mundo.
O grande, enorme, monstruoso Mário Cesariny.
O extraordinário Artur Boal.
A minha referência no jornalismo, o meu mestre Rogério Rodrigues.
4.
Os robôs não sabem ouvir.
Se soubessem conseguiriam escutar o Cante em tantas garagens alentejanas na Amadora.
Ou perceberiam a razão de ali terem nascido os Buraka, a banda mais cosmopolita da nossa história.
De ali ter surgido o Festival de Banda Desenhada.
De terem ali aparecido os mais notáveis artistas urbanos.
De ali existir uma Biblioteca sempre cheia de miúdos ávidos de leitura e de mundo.
Os robôs não sabem.
Se soubessem não se limitariam a ver betão onde eu vejo vida.
E tudo o resto que nos faz ser o que somos.
Vida.
Pessoas.
Grandeza.
A Amadora é precisamente tudo o que não se vê.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e RTP Play.