1.
Sou republicano e de esquerda.
Acredito na democracia, sou otimista sobre o ser humano, mas talvez tenha poucas razões para não começar a adaptar o discurso.
A democracia por vezes não parece ser para nós.
Uma parte do que somos gosta de ser mandada, de ir para aqui ou para ali a toque de caixa, gritar quando todos gritam, ler um jornal que nos diga a verdade, programas de televisão que não nos façam pensar, que nos ofereçam a papinha feita e mastigada, ir para a cama de consciência leve e o fígado liberto da porcaria que dizemos dos outros.
2.
Sou republicano, mas depois vejo um primeiro-ministro em Espanha borrado de medo a fugir da multidão em Valência.
Sempre impecável no seu fato bem-sucedido.
Impecável a falar da pobreza, mas sem fazer puto de ideia do que é a pobreza. É tudo teórico, miseravelmente teórico e instrumental.
E depois vejo o Rei de Espanha a enfrentar a multidão.
A levar com bosta e a ser insultado, mas a ir, a estar, a oferecer-se ao holocausto por ser assim que tem de ser.
Porra, sou republicano, mas vejo um primeiro-ministro socialista a sair de mansinho e um rei a enfrentar o povo.
3.
E qual a razão para me calar quando um condutor da Carris é incendiado por marginais?
Um homem de 40 anos, sozinho e acabar o seu turno em Santo António dos Cavaleiros, um tipo tranquilo que se preparava para regressar a casa e a quem foi atirado um Cocktail Molotov pela sua janela aberta?
Um homem que saiu a gritar do autocarro e com a cabeça e o tronco em chamas, que suplicou por uma ajuda que só lhe chegou dos vizinhos no prédio em frente.
Um homem que ficará com sequelas toda a vida por estar na hora e no sítio errado?
Tenho de fazer silêncio e não ser solidário com um inocente por ter de medir as palavras para não ser confundido com os patetas do Chega?
Tenho de fazer silêncio para não desviar as atenções da lamentável morte de Odair?
Como se uma coisa fosse a outra?
Como se tivéssemos todos de estar entrincheirados?
4.
Sou de esquerda e republicano, mas talvez não seja já isso que define o que verdadeiramente interessa.
Não é isso que define o caráter.
A coragem.
A compreensão do ser humano.
A empatia.
A coerência.
Um Rei em Espanha enfrentou a multidão cagado de lama.
E um primeiro-ministro republicano e de esquerda fugiu pela esquerda baixa.
Que tristeza profunda.
Texto e programa de Luís Osório
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