1.
Fernando Pessoa morreu no início da noite do dia 30 de novembro de 1935.
Poucos minutos antes de partir pediu os óculos à enfermeira – foram essas as suas últimas palavras.
“Dê-me os óculos”…
…como se deles precisasse para entrar pela noite dentro ou por um súbito desejo de escrever um último e impossível poema.
2.
Morreu rebentado por dentro.
Era mais novo do que eu sou agora, apenas 47 anos e milhares de poemas e páginas escritas e guardadas em segredo na sua casa da Coelho da Rocha, em Lisboa.
O homem que morreu no Hospital de São Luiz dos Franceses, no Bairro Alto, faz por estes dias 89 anos, estava quase completamente sozinho.
Apenas uma enfermeira e um capelão que lhe acenou com a imortalidade.
Mais nada.
Completamente sozinho e incógnito como se fosse um quase indigente, um maluquinho que andava por Lisboa e parava em dois ou três cafés onde não tinha de dizer o que queria.
Chegava e o copo e um cinzeiro já estavam na mesa onde escrevia e escrevia e escrevia.
Para os empregados da Brasileira ou do Martinho era o senhor Fernando, um intelectual que gastava em vinho e absinto, um cliente fiel que tinha bom beber, nunca ninguém o vira trocar as pernas por muito álcool que tivesse metido no bucho.
3.
Para os escritores da época era um homem interessante que passara ao lado de uma carreira.
Publicara um único livro com um longo poema a que chamou “A Mensagem”, mas a sua excentricidade condenara-o a morrer praticamente sozinho.
No dia do seu funeral estavam menos de 50 pessoas.
A sua irmã partira uma perna e decidiu ficar por casa, mas o “boca a boca” permitiu que alguns dos seus mais ilustres amigos do Orpheu tivessem aparecido – Almada Negreiros lá estava, António Ferro e António Botto também.
Todos lamentaram que não se tivesse cumprido e alguns pediram ao cunhado que não deitasse nada fora pois Pessoa poderia ter em casa algum poema inédito.
4.
E tinha.
Não um poema, mas uma biblioteca de textos inéditos.
Vidas que inventara.
Contos.
Filosofia.
Peças de Teatro.
Cartas astrológicas.
Textos políticos.
E poemas, muitos.
Livros inteiros por publicar.
Afinal, aquele homem rebentado por dentro, dilacerado pela melancolia, pelo fumo do tabaco e pelo álcool, inventara em vida um mundo novo.
Afinal, Pessoa era muito mais do que Pessoa.
Era Álvaro.
Era Ricardo.
Era Alberto.
Era Bernardo.
Era tudo.
Foi tudo e ninguém o sabia.
Nem a enfermeira que lhe satisfez o seu último pedido.
“Dê-me os óculos”, como se precisasse deles para se fazer à viagem.
Quantos génios morreram sem que o soubéssemos?
Quantas vidas deixámos passar sem perceber que eram especiais?
Texto e programa de Luís Osório
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