1.
Há medida que o tempo nos passa vamos acumulando perdas.
Umas em vida, outras absolutamente irremediáveis.
Gente que parte e nos vai esvaziando – avós, pais, irmãos, amigos íntimos, as pessoas a quem amámos.
Se vivemos o tempo suficiente construímos dentro de nós um cemitério privado onde passam a viver os que deixámos de poder encontrar.
Alguns tão vivos, ou até ainda mais vivos, do que quando existiam num corpo.
2.
Tenho dentro de mim um jardim florido onde os meus mortos se encontram quando os convoco.
E no meu telemóvel alguns números que não consigo apagar.
O da minha mãe e do meu pai.
Da avó Alice.
Da tia que me ajudou a criar, a minha doce Cristina.
De vários amigos próximos.
3.
Em que momento estamos realmente preparados para apagar os números de quem amámos?
É melhor fazê-lo logo a seguir à notícia ou deixar andar até estarmos apaziguados?
Não faço ideia, não consigo deixar de os ter, apagá-los tem sido uma impossibilidade.
É como se tivesse a obrigação de estar preparado para receber uma chamada impossível.
Ou para a fazer.
Já estive quase a ligar à minha mãe.
Num dia de insuportável tristeza peguei no telemóvel e procurei o seu número. Estive quase, mas desisti por não me parecer urgente, a tristeza passaria umas horas depois, não havia necessidade de gastar este derradeiro recurso.
4.
Na minha cabeça tenho também números fixos de um outro tempo.
68 32 00 era o da casa da minha infância.
53 39 72 o da avó Alice e do pai.
54 31 81 o das tias Cristina e Teresa.
Já os tentei esquecer, mas não é possível não os lembrar.
5.
Em que momento estamos preparados?
Consegues responder-me?
Tens números que não apagas?
E se os apagaste como conseguirás reconhecer o número se te telefonarem de uma morada impossível de encontrar ou descobrir?
Hoje era apenas isto.
Dizer-te que neste quase Natal há números que continuam vivos.
E que é mesmo assim.
Texto e programa de Luís Osório
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