1.
Todas as memórias são falsas, escreveu Freud.
E se não escreveu assim foram palavras próximas a essas. No que recordamos vamos ajeitando a verdade por defeito ou por excesso e sem que disso nos apercebamos.
Há também as histórias que nos contam na brincadeira, como se fossem verdade não o sendo.
2.
O meu pai perguntou-me um dia se me lembrava da minha primeira namorada.
Respondi-lhe que sim, como é que alguém se poderia esquecer de tal coisa?
Contou-me então do meu equívoco.
A primeira namorada da minha vida não era a que eu acreditava ser, mas uma outra. Tínhamos brincado na Festa do Avante! e eu ficara tão entusiasmado que declarei sob minha palavra de honra que o amor da minha vida era a filha de dois grandes amigos seus, o Carlos Alberto Moniz e a Maria do Amparo.
“Foi na Festa de 1980, tinhas nove anos”, contou-me sem se rir.
E em vários natais das nossas vidas, voltava à carga – então, já voltaste a falar com a Lúcia Moniz? Ainda no outro dia me perguntou por ti e me pediu para almoçarmos todos.
3.
Lúcia tornou-se estrela de muitos tabuleiros.
Ouvi-a a cantar, vibrei com a vitória no Festival da Canção, com o seu talento como atriz, com os prémios que foi tendo, com a sua inteligência nas entrevistas.
Estive quase a ligar-lhe uma ou duas vezes, mas acabei por não o fazer. E contei com orgulho mal disfarçado esta história às pessoas mais importantes da minha vida.
Sabes quem foi a minha primeira namorada?
A Lúcia Moniz.
4.
Um dia, acabara eu de entrar num restaurante japonês perto da sede da Polícia Judiciária, quando vi a Lúcia a pagar a conta na mesa à minha frente.
Chegara o momento de nos rirmos do nosso namoro de crianças.
Levantei-me quando ela se levantou.
Aproximámo-nos e eu olhei-a com um sorriso imbecil nas trombas.
Lúcia olhou-me como se não me visse.
Passou por mim com a pressa que reserva aos maluquinhos que se babam de espanto quando a veem.
De rabinho entre as pernas tornei ao meu lugar, bebi dois Saquês e procurei por ela no telemóvel.
Lúcia Moniz, nascida no dia 9 de setembro de 1976.
Logo, cinco anos mais nova do que eu.
Conclui que a história não podia ser verdadeira pois quando eu festejara os nove anos, a Lúcia acabara de fazer quatro.
Ri-me sozinho embora tivesse vontade de chorar da figura que fizera com alguém que não fazia a mínima ideia de quem eu era.
O meu pai deve ter gozado bem o prato e eu, infelizmente, já não me posso vingar com o requinte que ele merecia.