1.
É hoje que estreia o meu novo espetáculo.
Dito assim soa estranho, parece que sou um ator ou um cantor ou um artista aplaudido quando sou apenas eu, o Luís que, por vezes, quando se olha ao espelho não sabe bem quem é.
Que por vezes não sabe bem a quem pertence esta cara e este corpo…
Questiono-me vezes sem conta sobre o lugar para onde terá ido o corpo e a cara que em mim já não existem.
2.
E que ventos são estes?
É a pergunta que dá título ao espetáculo que hoje estreia em Lisboa.
A sala está mais do que esgotada.
E também já não há bilhetes para amanhã e depois de amanhã e para domingo.
Estou no silêncio de um camarim e o João deve estar a chegar.
Não consigo ter explicação para a responsabilidade de estar em palco com ele, um dos grandes músicos e compositores da nossa história de país livre.
3.
João Gil, um dos melhores amigos do meu pai.
O João que foi um dos poucos, com o Manuel Faria e o Tozé Brito, que o ajudaram quando ele não tinha um único euro no bolso por tanta gente lhe ter fechado a porta por ele ter SIDA.
O João que parece ter menos vinte anos e que hoje estará em palco comigo, como se a vida tivesse vontade de nos juntar, de nos puxar para a obrigação de fazermos tudo para resgatar a esperança e preservar a memória.
Qual a probabilidade de isto acontecer?
Terá sido o meu pai a soprar qualquer coisa cá para baixo?
Uma pessoa fica a pensar, sabes?
O que raio sucedeu para um de nós ter telefonado ao outro, para termos almoçado, para no final do almoço falarmos da estranha possibilidade de um dia fazermos um espetáculo que juntasse música, teatro e tudo o que vão poder ver.
O João deu-me um abraço no final desse almoço e perguntou-me se eu não queria fazer o que de nenhum de nós fizera antes?
E eu disse-lhe que sim, prometi-lhe que ia escrever.
E em poucos dias o guião estava escrito.
E ele ficou feliz e não me esqueço das suas palavras.
– Vamos Luís, sem olhar para trás, sem medo, sem hesitações.
E fomos.
O João acaba de chegar.
Está a afinar a guitarra.
E eu vou cantar uma canção de amor, a mais bonita canção de amor que conheço.
Até já.