1.
Falam-me do meu pai todas as semanas.
Contam-me histórias que guardo – da sua coragem física, da sua generosidade, do seu combate à SIDA, das suas entrevistas, da sua militância no Partido Comunista, do seu amor pelo fado ou da sua amizade com Amália Rodrigues.
É impressionante e um motivo de orgulho, claro.
Da mesma maneira que foi um orgulho a condecoração de Marcelo Rebelo de Sousa, o diploma entregue pelos capitães de Abril ou os vários prémios que guardo numa caixinha de cartão.
2.
Mas o que gostava mesmo era de o abraçar na sua juventude.
Abraçá-lo quando eu ainda cá não estava e ele era outro.
Abraçá-lo sem doenças, sem dificuldades de locomoção, sem o carrego do passado, sem os 50 comprimidos por dia, sem a dor física constante.
Isso eu queria, confesso-te.
Vê-lo nas noites, nas casas de fado, em reuniões políticas.
3.
Sim, gostava de saber dele.
De o ver à distância, de o observar.
De falar com ele sobre a sua homossexualidade, sobre os amores que teve – será que teve algum?
Conheci um ou outro ao longe, detestei-os, fez-me impressão.
Achei-os horríveis, mas nunca lho disse.
Nunca tive a coragem de lhe perguntar pelo homem da sua vida.
Ou pela minha mãe.
Do dia em que fui gerado.
De quando andavam de mão dada em Paris…
… nunca lhe contei do que ela me confessou, da sua enorme paixão pelos seus olhos, pela sua loucura, por ter achado que conseguiria que ele se apaixonasse.
4.
Gostava de lhe ter dito o que não disse.
E de o ter observado quando era adolescente ou quando se conheceram numa casa de fados em Cascais.
Adorava tê-los visto juntos.
Tê-los visto a dançar aquela música de Brel que eu sei que dançaram.
Mas só me lembro do meu pai doente.
E das fotografias em que tresandava a juventude e futuro.
Antes de mim todos pareciam felizes.
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