1.
Quando comecei a trabalhar, numa redação em que o jornalismo se confundia com a vida, Lídia Jorge tinha quarenta e poucos anos e simbolizava uma nova geração, com novas ideias, novas propostas, novas histórias.
Confirmou muito do que se adivinhava.
Mas foi no Dia de Portugal que assinou a sua imortalidade.
2.
Lídia Jorge nasceu sete anos depois de Cavaco Silva.
Nasceram precisamente no mesmo lugar, uma vila algarvia de um nome que passou a ser-nos familiar: Boliqueime.
Cavaco ganhou eleições atrás de eleições, marcou um tempo, dividiu as águas entre os que o veneravam e os que o
detestavam, mas aquele bocadinho de terra perto de Loulé, tornou-se o lugar onde o homem nasceu.
Só que no passado Dia de Portugal também essa verdade deixou de ser verdadeira.
A partir de agora, Boliqueime é o “ermo” onde nasceram duas visões diferentes do país – a visão de Cavaco Silva e a visão de Lídia Jorge.
3.
Lídia que escreveu grandes livros.
“Misericórdia” acima de todos – a partir de um lar e do último ano de vida da sua própria mãe, faz-nos o retrato do envelhecimento, da memória e do esquecimento, sem dúvida da proximidade da morte.
“Misericórdia”, mas também “A Costa dos Murmúrios”, com a marcante Eva, que, durante a Guerra Colonial em Moçambique, nos provoca o pensamento e coloca em causa a verdade única e masculina.
Ou “O Vento Assobiando nas Gruas”, em que dois tempos irreconciliáveis se encontram num livro em que, mais uma vez, uma mulher, uma jovem prodigiosamente pura, torna ridículas as nossas patéticas certezas absolutas.
Grandes livros, mas no passado dia 10 de Junho, Lídia escreveu o seu melhor livro.
4.
Tem 78 anos.
E indicou-nos o caminho da liberdade, a partir de agora o seu Graal, o seu testamento vital.
Não foi um discurso de esquerda, foi um discurso para todos os democratas – de esquerda e direita, católicos e ateus, liberais e conservadores, progressistas e social-democratas.
Falou do que somos.
Da nossa identidade.
Do orgulho de uma pertença feita de várias cores, de várias misturas, do bem e do mal, do que nos orgulha e do que nos envergonha.
Portugal é isto.
Passará a ser isto para muitos.
Deveria até ser lavrado na Constituição.
Foi muito bonito.
E trouxe esperança.
Agradeço por isso, querida Lídia Jorge.
Nascida em Boliqueime.
Escritora agora imortal.
Combatente da liberdade, da memória e de todos os radicalismos.
Obrigado.
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