1.
No passado 17 de junho, Ruy de Carvalho fez uma festa em casa.
Estava sozinho, mas preparou tudo com antecedência para que nada faltasse. Nada poderia faltar.
Não te falo da mesa farta, de serpentinas ou convites feitos nas vésperas – o ator dos atores, não precisou de rigorosamente nada.
Não precisou de comida, de convidados ou de qualquer adereço. Só do silêncio, da lentidão que apenas as casas vazias têm e de tempo, o seu bem mais precioso.
2.
Ruy preparou-se para Ruth, o grande e único amor da sua vida, a mulher com quem celebraria 71 anos de casamento.
Pôs um disco de Bennett, leu-lhe poemas e falas da sua vida de ator, brindou com um bocadinho de vinho no fundo do copo e preparou o corpo para receber a sua voz.
A festa só pode te sido muito bonita; os dois, lado a lado, numa casa que continuam a partilhar apesar de Ruth ter partido há quase vinte anos.
Partiu, mas não partiu.
Continua ao seu lado e festejaram os dois naquele dia de junho.
3.
Ruth respondeu-lhe num alfabeto de silêncio que apenas ele reconhece.
Falaram do dia em que ele a viu.
Linda, luminosa, bailarina de conservatório.
Ruy estava com um amigo, creio que Armando Cortez, e ao vê-la, confessou que aquela só podia ser a dos seus sonhos.
4.
Falaram.
Entenderam-se ainda sem se poderem entender.
Ruth namorava com um rapaz por quem não se sentia apaixonada. E aquela primeira abordagem, a maneira como foi olhada e desejada, tinha sido, num único minuto, mais forte do que tudo o que ela sabia sobre essa coisa de amar e ser amado.
5.
Ruy falou-lhe desse primeiro encontro.
E dos sete anos de namoro.
E dos mais de cinquenta de vida em comum.
E das reticências dos pais que achavam que vida de ator não era recomendável.
E dos dois filhos que tiveram.
E dos netos e bisnetos que ela não chegou a conhecer.
Ruy contou-lhe o que se passa com cada um deles.
Dos espetáculos que tem feito, que continua a fazer.
Das saudades de adormecer com ela, de tocar com o seu pé no pé dela, de procurarem a mão um do outro.
Confessou-lhe que a procura todas as noites na plateia.
Foi mesmo uma grande festa.
Com a mesa vazia de tão cheia.
Com beijos por beijar.
Abraços por abraçar.
E uma promessa de amor eterno mais do que concretizada.
Parabéns, Ruth.
Ainda bem que o escolheu para seu par neste bailado que continua.
Que continuará sempre.
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