Hoje uma vez mais estamos no teatro. E connosco uma história que nos leva aos tempos da independência dos Estados Unidos, mas num prisma que vinca um olhar atual. A música traduz isso mesmo, juntando hop hop, R&B e outras referências. A escrita é cuidada. A cenografia discreta mas eficaz. E a coreografia é magistral… Podemos acrescentar que este musical está a cumprir dez anos de vida na Broadway, assim como há muitos anos ocupa o Victoria Theatre em Londres… Hoje, as notas no palco levam-nos ao imperdível “Hamilton”.
Apesar de uma história já longa, o teatro musical não faz de todas as produções de sucesso um caso de referência. Mas “Hamilton”, de Lin-Manuel Miranda, já conquistou esse estatuto. Pela escrita, pela música, pela visão projetada no palco e pela diversidade refletida num elenco que projeta a América de hoje na elite política e militar de uns jovens Estados Unidos da América que então nasciam. A acção, vale a pena lembrar, decorre entre finais do século XVIII e a aurora do século XIX.
Quando chegou a um teatro fora da Broadway, com previews em janeiro de 2015 e estreia oficial no mês seguinte, “Hamilton” esgotou num ápice o tempo inicialmente previsto. Alargou por duas vezes essa temporada inicial até que, em julho, após sete meses de casa cheia, se mudou para a Broadway, tomando conta do Richard Rodgers Theatre, onde ainda hoje se mantém, de pedra e cal. Seguiu-se uma produção em Chicago em 2016. Uma primeira digressão norte-americana a partir de 2017 e uma segunda a arrancar em 2018. Depois houve residências em Porto Rico e São Francisco e uma produção permanente em Los Angeles. Por essa altura Londres estava já também rendida a “Hamilton”, com a sala mesmo ao lado da estação de Victoria a receber plateias esgotadas desde 2017. E para terminar este mapa mundo de “Hamilton” devemos acrescentar ainda produções na Austrália, na Alemanha (em alemão), uma digressão no Reino Unido e Irlanda e uma outra, que promete correr mundo, que entretanto já passou pela Nova Zelândia, Filipinas, Abu Dhabi e Singapura. Até agora os direitos da peça não foram ainda disponibilizados para produções não oficiais…
E quem é Lin-Manuel Miranda, o autor deste musical? Nasceu em Nova Iorque em 1980 numa família com ascendência porto-riquenha. De resto o seu nome, Lin-Manuel, vem de uma referência feita num poema sobre a guerra no Vietname, um poema de Jose Manuel Torres Santiago, de Porto Rico. Era ainda aluno de escola e já compunha pequenas peças musicais. E estava no segundo ano do seu curso universitário quando fez os primeiros esboços para aquele que seria o seu primeiro musical. Chamou-se In The Heights, teve estreia no Conneticut em 2005, depois conheceu uma residência off-Broadway e chegou à Broadway para não deixar ninguém indiferente…
“In the Heights” é uma história passada em Washington Heighs, na zona norte de Manhattan. Tem como protagonistas uma comunidade dominada por emigração latina, sobretudo vinda da América Central. Musicalmente tem o hip hop, a salsa e outros temperos latinos no centro das atenções. E à frente do elenco, no papel do protagonista Usanavi, estava, na produção original, o próprio Lin-Manuel. Foi um sucesso. E dos 13 Tonys para os quais foi nomeado arrebatou quatro, entre os quais Melhor Musical e Melhor Música Original. Ganhou ainda um Grammy… E mais tarde conheceu até uma adaptação ao cinema.
Logo a seguir Lin-Manuel Miranda colaborou com Tom Kitt e Amanda Green na escrita da música e letra das canções do musical “Bring It On”, que estreou em 2011. E em 2014 fez exatamente o mesmo para “21 Chump Street”, um musical em apenas um acto.
Entre estes dois últimos musicais começou a colaborar com a Disney, ao participar como ator em “A Extraordinária Vida de Timothy Green”, um filme de imagem real de Peter Hedges. Mas logo depois submeteu aos mesmos estúdios uma maquete com música sua. E em 2014 estava a assinar a banda sonora de “Moana”. Fez ainda música usada em cenas pontuais em filmes da saga Star Wars, colaborou em Duck Tales, Mary Poppins Returns, a versão em imagem real da Pequena Sereia, Musafa e, claro, o magnífico “Encanto”. Vale a pena acrescentar que esta banda sonora deu um Óscar ao seu compositor pela canção Dos Oruguitas.
E chegamos finalmente a Hamilton… E na verdade, quando tudo começou, a ideia de Lin-Manuel não era a de criar um musical mas sim um disco temático, conceptual, portanto, sobre a figura de Alexander Hamilton, um militar muito próximo de George Washington durante a guerra da independência americana e um político com papel determinante nos primeiros anos da então nova nação.
A ideia de uma América de então contada pela América de agora, como o próprio autor já descreveu, começou a nascer por causa de um livro. Durante umas férias, em 2004, chegou às mãos do compositor uma cópia da biografia de Alexander Hamilton, por Ron Chernow. Lin-Manuel descobriu então que já tinha havido uma peça sobre Hamilton na Broadway… Mas fora em 1917… E pelos vistos não havia grande memória sobre o caso…
Começou então a criar um projeto ao qual chamou The Hamilton Mixtape… E em maio de 2009, quando foi convidado para atuar na East Room da Casa Branca, o motivo do desafio era o musical In The Heights. Mas Lin-Manuel resolveu surpreender tudo e todos, cantando ele mesmo uma primeira versão da canção que hoje abre o musical. E ali revelou que estava a criar um álbum sobre um antigo Secretário do Tesouro do governo americano. Logo depois descreveu a figura de Hamilton, notando que foi alguém com a capacidade para fazer a diferença. Disse que ia vestir a pele de Aron Burr (um vice presidente contemporâneo de Hamilton). Michele Obama acompanhou entusiasmada, estalando os dedos ao ritmo da canção. Ao seu lado o presidente Barack Obama ouvia atento e sorria… Na sala estavam também o ator James Earl Jones ou a cantora Esperanza Spalding… E no final a plateia levantava-se num aplauso que não deixava dúvidas… O tal álbum sobre Hamilton tinha pernas para andar.
Mas o tempo pregou uma boa partida a este projecto. E depois de um workshop numa universidade no estado de Nova Iorque em 2013, ficou claro que a ambição desta aventura tinha ganho outro fôlego. E dois anos depois foi o que se sabe… Com encenação de Thomas Kail e coreografia de Andy Blanken Buler (Blankenbuehler), Hamilton conta a história de vida de um dos “founding fathers”, os fundadores dos Estados Unidos da América.
A história começa por evocar o órfão que nasceu nas Caraíbas, que emigrou para Nova Iorque, estudou no Kings College e conheceu bem jovem figuras que teriam igualmente um papel de relevo na história como o futuro vice presidente Aaron Burr ou o francês marquês de Lafayette. Hamilton é logo elogiado pelos dotes de retórica. Toma um lugar ao lado de George Washington como ajudante de campo em tempo de guerra. Mais tarde, já numa nação independente, participa em momentos fulcrais da sua construção política. Torna-se Secretário do Tesouro… Mas nem tudo é um mar de rosas e o tempo torna velhos amigos em adversários político.
Ao mesmo tempo acompanhamos a história pessoal de Hamilton. O casamento. Os filhos… E o trágico duelo que lhe tira a vida em 1804. E o autor do tiro não foi mais senão o velho companheiro Aaron Burr, que conhecemos logo na canção que abre o primeiro ato…
A história, apesar de centrada em torno dos heróis da independência não esquece e o rei britânico Jorge III, que começa por ter uma visão muito cética, até mesmo jocosa, sobre o que então acontecia no outro lado do oceano. Não falta aqui adubo para um bom argumento de cinema. Mas até aqui de “Hamilton” o que temos é um filme do próprio musical, em palco, na Broadway, com o elenco original. Este filme-concerto está disponível na plataforma Disney + e brevemente terá exibição em salas de cinema.
Mas se a adaptação a cinema tarda, já os discos não têm faltado… A ideia do álbum conceptual inspirado por Alexander Hamilton que já existia antes da vontade em criar um musical, na verdade acabou por acontecer. Talvez com uma forma diferente do originalmente imaginado, mas o disco que surgiu em dezembro de 2016 como “The Hamilton Mixtape” junta canções do musical, e até algumas que ficaram de fora, mas em versões por nomes como os de Alicia Keys, lá está, mas também, Regina Spektor, os The Roots, John Legend ou Bill Sherman entre muitos mais.
Mas as derivações desta aventura de Lin-Manuel Miranda no mundo dos discos foram para lá deste álbum e, claro da gravação da própria música original, com o seu primeiro elenco. Entre 2017 e 2018 surgiram várias edições digitais às quais o músico chamou Hamildrops. Eram lançamentos mensais, com versões ou canções criadas à volta deste universo, envolvendo aqui figuras como vozes do próprio elenco, mas também, e entre outros, Weird Al Yankovic, as irmãs Ibeyi ou até Barack Obama, que em “One Last Time (44 Remix)” recita parte do discurso de despedida de George Washington.
Quem diria que o rosto da nota de dez dólares ganharia outra visibilidade e até mesmo reconhecimento por causa de um musical? É histórico, de facto.
Texto e programa de Nuno Galopim
O novo episódio de “Notas no Palco” encontra-se já disponível na plataforma RTP Play. Uma versão com mais texto e mais entrevistas está disponível nas plataformas de streaming Spotify e Apple Podcasts.
Os episódios desta primeira temporada de “Notas no Palco”, com autoria de Nuno Galopim, incluem entrevistas com Joaquim René (diretor dos teatros Variedades e Capitólio), o encenador Paulo Sousa Costa, os atores (e cantores) Fernando Fernandes (FF), Sissi Martins e Mariana Marques Guedes e ainda o crítico de cinema João Lopes.