1.
Dizem-se e escrevem-se coisas que se tornam verdades adquiridas, embora não o sejam.
Por exemplo: Carlos do Carmo morreu.
É uma frase curta e impositiva, fria, sem qualquer possibilidade de rebate – e basta-nos investigá-la dois segundos para que a notícia pareça completa:
“Carlos do Carmo morreu no primeiro dia do ano de 2021, no Hospital Santa Maria, em Lisboa, com um aneurisma da aorta abdominal”.
Lembro-me do funeral, dos discursos fúnebres, da bandeira portuguesa a meia haste, da sua voz nesse dia nas televisões, rádios e até na minha casa.
Ouvi “Estrela da Tarde”.
Todo o álbum de “Um Homem na Cidade”.
“Os Putos” e o que cantava de Brel.
2.
Só que não.
Não pode ser uma verdade adquirida que Carlos do Carmo esteja morto quando Maria Judite continua viva.
Se não os conheceste, e presumo que não os tenhas mesmo conhecido, isto talvez aparente ser uma bizarria, mas Carlos do Carmo e Maria Judite fizeram mesmo o que prometeram na madrugada em que se conheceram no Faia, casa de fados no Bairro Alto.
Carlos, conhecido por “charmoso”, encostou-a à parede e soprou-lhe:
“Aconteça o que acontecer és a mulher da minha vida. A partir de hoje vais ver com os meus olhos e eu com os teus”.
3.
Judite tinha 24 anos.
Os seus olhos eram muito bonitos, encantatórios.
Falava línguas, vivera em Londres e Paris, não era uma miúda parecida com nenhuma outra que o fadista conhecera.
E o Carlos quando abria a boca, bem…
…quando cantava, tudo passava a ser possível.
4.
Casaram seis meses depois numa cerimónia religiosa rápida por Carlos se ter esquecido de pôr cinto numas calças que lhe estavam a cair.
Estiveram juntos bem mais de 50 anos.
Tiveram três filhos e foram um do outro, olharam através um do outro como prometeram naquele primeiro fado.
Antes do Carlos entrar em palco, em todos os palcos, a Judite dava-lhe sempre um beijinho, um ritual necessário a que ela volta sempre que o pensa.
Deixou de o fazer, mas ele continua próximo.
Presente.
Por vezes, até o seu cheiro é sentido.
Juram que morreu, mas não é uma verdade adquirida.
A Judite está viva.
E dentro dela estão todos os fados, todas as canções, todas as histórias, esperanças, desilusões, frases e quedas da vida de um homem que foi Portugal.
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