1.
Já comecei a escrever esta história pelo menos três vezes.
Quando aconteceu, há precisamente dois anos.
E depois mais uma vez ou duas.
Travo e inicio, travo e volto a começar.
2.
É uma história triste.
De amor, mas mais triste do que deveria ser possível, uma história que não é justa e cuja moral não é clara.
Se estiverem crianças à tua beira, ao teu lado, desliga por um bocadinho – podes ouvir depois ou ler-me quando eles não estiverem perto ou já estiverem a dormir.
3.
Quero contar-te a história de Vital Marques e de Piedade do Patrocínio que foram casados mais de sessenta anos.
Uma história de amor muito bonita.
Vital guardava os jardins do Palácio de Queluz e Piedade vivia para ele, vivia para o instante em que ele voltava ao fim da tarde quase sempre com uma flor que lhe oferecia.
Gostavam de andar de mão dada, de ver as novelas e até de ir ao cinema ou a um restaurante chinês ao fim-de-semana. Era um segredo deles, adoravam os crepes e o chau-chau que Piedade tentava imitar em casa sem nunca ter conseguido que fosse tão soltinho como naquele chinês de Massamá.
Juntaram uns dinheiritos para a reforma.
Pensaram em fazer um cruzeiro e umas viagens para ver o mundo.
Pensamentos bonitos que os alimentaram numa velhice feliz e sempre apaixonada.
4.
Até que um dia, Piedade ficou doente.
Uma doença degenerativa…
Alzheimer.
Vital tratou de tudo.
Aprendeu a fazer em casa o que não sabia.
E voltou a oferecer-lhe flores quase todos os dias.
Quando ela desistiu de se levantar da cama, Vital preparava-lhe a caixinha dos remédios e as refeições, aconchegava-a numa conchinha que a tranquilizava.
A médica de família ficava encantada com eles.
Eram à prova de bala, um exemplo.
Piedade foi-se esquecendo de tudo.
E um dia, ao acordar, não o reconheceu.
Vital chorou muito.
Sabemos que chorou porque a carta que escreveu ainda estava molhada quando foi encontrada.
Escreveu-a na manhã em que o amor da sua vida não sabia quem ele era.
Faz hoje dois anos que a escreveu antes de matar Piedade e de se matar a seguir.
Por amor.
E contra o esquecimento.
Ouça o “Postal do Dia” em Apple Podcasts, Spotify e RTP Play.