Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, de 1987, e Trabalhos de Casa, de 1989, fazem parte da “trilogia de Koker” do iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016), um conjunto de filmes interligados que têm como cenário comum a referida aldeia do norte do Irão. E, apesar de o primeiro filme ser uma obra de ficção e o segundo um documentário quase pedagógico, há bastantes elementos comuns a ambos. Desde logo, um apreço pela simplicidade realista (ainda que em géneros diferentes) e um núcleo temático idêntico, que se traduz num olhar sobre crianças em idade escolar e sobre o próprio sistema de ensino, mas também numa defesa de valores como a responsabilidade e a solidariedade por oposição ao autoritarismo e às regras castigadoras e às vezes absurdas dos adultos. Na verdade, o grande tema destes dois filmes de finais dos anos 80 é a forma como para as crianças as imposições não questionadas podem ser opressivas e castradoras (embora toda a educação seja forçosamente um tanto repressiva), mas também a forma como o próprio ambiente escolar e familiar lhes tolhe a criatividade e a expressão, instigando o medo e gerando uma surda incomunicabilidade entre gerações.
Como ficção realista com várias camadas, Onde Fica a Casa do Meu Amigo? é o mais poderoso e tocante dos dois filmes. Partindo de uma premissa muito simples – um rapaz do ensino básico que traz para casa por engano um caderno muito idêntico de um colega e que parte numa busca sem bússola da sua casa para lho entregar e assim evitar que seja castigado sem clemência pelo professor –, Kiarostami constrói neste filme sobre responsabilidade e altruísmo uma espécie de parábola quase kafkiana sobre uma procura labiríntica e angustiosa que parece ser inglória e em vão. A dado passo, essa procura que o leva a outra cidade torna-se uma metáfora da solidão e da desorientação de uma criança no meio de um dececionante mundo de adultos que não a acode nem lhe vale de nada.
Essa mesma incomunicabilidade entre gerações também a encontramos em Trabalhos de Casa. Neste caso, como o realizador refere num preâmbulo metadocumental, aquilo que se propõe fazer é uma “investigação filmada, com alunos, sobre os trabalhos de casa”. “O projeto partiu de uma reflexão pessoal. Eu próprio tive problemas com o meu filho graças aos trabalhos de casa dele. Os trabalhos de casa destinam-se supostamente aos filhos, mas os pais também penam um bocado. Portanto, fui buscar a minha câmara para vir até aqui e investigar”, explica o realizador a alguém que o aborda à porta de uma escola. Através de entrevistas que faz a uma série de miúdos do ensino básico, Kiarostami mede o pulso ao próprio sistema escolar e educativo iraniano. E acaba por concluir, também por intermédio de depoimentos de alguns pais, que existe uma ênfase excessiva no castigo e na punição, em vez do reforço pelo encorajamento, mas também uma perniciosa pressão a que os alunos estão sujeitos devido a um sistema de ensino obsoleto e limitador. Em ambos os filmes, a ideia que fica a pairar é a de que a escola tem qualquer coisa de “alienante”, quando deveria ser um viveiro de estímulos à criatividade e ao desenvolvimento da capacidade de pensar.
Texto de Nuno Camacho
As cópias restauradas de Onde Fica a Casa do Meu Amigo? e Trabalhos de Casa foram destaque no último episódio de Duas ou Três Coisas, já disponível na RTP Play.