O mundo do cinema de animação junta aos ecrãs nacionais uma proposta diferente esta semana. Com importante contribuição portuguesa (no trabalho de animação), “Mataram o Pianista” é a nova proposta da dupla Javier Mariscal e Fernando Trueba (a mesma de “Chico e Rita”) e transporta-nos para uma narrativa que cruza uma história real com um plano de ficção, levando um jornalista nova-iorquino (a “personagem” de ficção), cuja voz é interpretada por Jeff Goldblum, que parte em busca de um nome que, um dia, descobre ao ouvir um disco. Um pianista. Um pianista de jazz. Brasileiro… Do qual nunca ouvira antes falar. Quem será? Por onde andaria? E é então que entra em cena a outra dimensão de um filme, que assim pisca também o olho a uma certa dimensão documental que, nos últimos anos, tem marcado importante presença na banda desenhada (sobretudo a de origem franco-belga) mas também no próprio cinema de animação (com exemplos em filmes como “Valsa com Bashir” de Ari Folman ou “Flee” de Jonas Poher Rasmussen).
Esta é a história de um pianista, mas também a de ecos de um tempo na história sul-americana. No centro das atenções está uma figura real: Tenório Jr, pianista, nascido no Rio de Janeiro em 1941, figura com relevo no empolgante panorama do samba jazz, com percurso ligado a discos e momentos em palco partilhados por nomes como Milton Nascimento, Edu Lobo, Gal Costa, Egberto Gismonti ou Lô Borges, entre muitos outros, desaparecido (subitamente) em 1976, em plena digressão, na Argentina, na qual acompanhava em palco Vinicius de Moraes e Toquinho. O tempo veio a desvendar a história (terrível) de um sequestro, prisão, tortura e morte. Suspeito de atividades políticas (sugeridas eventualmente mais pela sua aparência do que por ações ou palavras), o pianista que está no centro das atenções deste filme desapareceu a poucos dias de um golpe de estado na Argentina e num tempo em que o Brasil vivia sob uma ditadura militar. Este cenário político tem um peso determinante em toda uma história que vive anos de silêncios até que acaba por ser revelada.
Apesar de reconhecido como um grande músico pelos que com ele partilharam palcos e estúdios e pelos que o escutaram naqueles tempos, Tenório Jr. acabou por ter uma relativamente discreta passagem pelos discos, resumindo-se a sua obra em nome próprio a um álbum, “Embalo”, editado em 1964. Esse disco, assim como outros nos quais participou, passam pelas imagens de “Mataram o Pianista”, filme que usa o jornalista criado por Javier Mariscal e Fernando Trueba como forma de nos revelar não só a história de vida de Tenório Jr, do cenário político brasileiro e argentino no tempo da sua morte e o processo de gradual esclarecimento da verdade, mas aproveita o momento para nos dar também pistas sobre o contexto cultural em que surge a bossa nova (notando como o jazz ali chegou como referência), o samba jazz e toda uma boémia carioca à qual associamos a emergência de todas estas músicas (e seus protagonistas). A face documental do filme torna-se evidente através da presença de depoimentos pelas vozes de nomes como Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, João Donato, Edu Lobo ou Chico Buarque, entre muitos, sublinhando a dupla de realizadores a sua veia cinéfila ao associar imagens que ligam estas músicas, tempos e protagonistas ao cinema de Godard, Truffaut ou Glauber Rocha.
Texto de Nuno Galopim
“Mataram o Pianista” é um dos temas de conversa no episódio desta semana de “Duas ou Três Coisas”, de João Lopes e Nuno Galopim, que aborda ainda um novo ciclo de cinema pensado com Godard como figura tutelar, a série “O Regime”, o livro “O Cavaleiro Inexistente” de Italo Calvino e a coleção de livros 33 1/3, sem esquecer o centenário de Sarah Vaughan, que se assinala dia 27.
Humberto Santana, produtor português e membro deste projeto, esteve à conversa com Ricardo Soares e Frederico Moreno no “Programa da Manhã” da Antena 1.