1.
Não há nenhuma guerra como a do Sudão.
Não nos afeta como o conflito na Ucrânia e a ameaça russa na Europa.
Não nos indigna como o ataque dos israelitas em Gaza ou o ataque do Hamas em Israel.
Mas nos últimos dois anos, em todo o território do Sudão morreram mais de 200 mil pessoas.
E desde 2003, com os massacres de Darfur à cabeça, os números aumentam – há quem avance, como se não passasse de uma estatística, com um milhão de mortos.
2.
Não são apenas mortes por estilhaços de guerra.
Foram massacres.
Torturas.
Violações.
Execuções.
Gente que matava pessoas apenas porque sim.
Corpos esventrados, valas comuns, cabeças decapitadas, corpos incendiados, pelotões de fuzilamento, crianças mortas à frente dos pais.
Tudo, tudo, tudo.
3.
Sei que te faz impressão ouvir, a mim faz-me impressão quando escrevo.
Está a acontecer agora e continuamos a não ligar.
Não ligamos porque é muito longe e são muito pretos.
Ou, os que de nós são bem-intencionados, preferimos o silêncio para não sermos acusados de racismo ou oferecermos um argumento aos radicais de extrema-direita.
Sim, os racistas que aproveitam tudo para afirmar que o falhanço de África prova o quanto aquela gente é selvagem e inferior.
4.
São tão selvagens como nós.
Com a diferença que temos melhores perfumes, melhores bibliotecas e melhores condições para não morrermos infetados por alguma bactéria ou vírus.
De resto, vê o que está a acontecer um pouco por todo o lado.
No Sudão são selvagens, não há como objetar.
Mas nos países civilizados escondemos a selvajaria com cinismo e boas maneiras.
5.
Se me perguntares a razão de se matarem não te consigo explicar.
Sou capaz de te dizer dos generais e repetir argumentos pouco importantes, argumentos que não fazem sentido.
Mas a explicação é a mesma de sempre.
Com catanas ou bombas atómicas, com exércitos sofisticados ou com crianças a servir de carne para canhão, a explicação é a mesma de sempre.
O poder.
O dinheiro.
Os diamantes.
O petróleo.
6.
Não quero deixar de me emocionar, entendes?
Não quero deixar de me comover com a pequena Walaa, hoje com cinco ou seis anos.
A menina que fugiu dos bombardeamentos e da morte.
Com a sua mãozinha na mão da irmã fugiram aos gritos e à dor que parecia vir de todos os lados.
Fugiram descalças de Cartun.
Quatro dias e três noites em fuga por entre corpos, sangue e um cheiro putrefato de águas paradas.
Sem comer, sem beber água, sem pararem, sem que ninguém olhasse por elas.
Walaa tinha apenas quatro anos.
E a irmã, de nome Shegn, mais dois.
Fugiram até que alguém da UNICEF as agarrou em Al-Faw.
Hoje, um ano depois, Walaa é uma menina que perdeu a capacidade de falar.
Vive em silêncio e só agora começa a olhar para as brincadeiras de outras crianças que a desafiam como se para elas ainda existisse infância, como se ainda a pudessem resgatar.
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