1.
Gostava de te contar da vida do Senhor Hakamada.
Tem hoje 88 anos, adotou dois gatos a quem trata como filhos e, algumas vezes por semana, um grupo de gente vai buscá-lo à instituição onde descansa e leva-o a lanchar.
O Senhor Hakamada não conhece as pessoas que o tratam bem, mas sorri e vai.
Adora comer bolos, uns atrás dos outros – das primeiras vezes, sofregamente, agora de outra maneira, mais tranquila.
No lar, os funcionários têm ordens para lhe trazer comidinhas especiais, amaciam-no com rebentinhos de tofu, ramen que os enfermeiros mais novos o convencem ser massinha do paraíso e temakis de atum bem melhores do que gelados de chá verde.
2.
O Senhor Hakamada tem 88 anos e esteve no corredor da morte de Shizuoka durante 46.
O velho japonês estava inocente.
Aguardou quase meio século pelo dia em que os guardam lhe abririam a porta para ser enforcado – no Japão é assim, a pior provação é que nunca se sabe o dia em que os pés são algemados e os penitentes percorrem o caminho até à corda.
3.
Trabalhava numa fábrica de soja. Fora fraco pugilista e desistira do boxe porque eram mais as vezes que ia ao tapete do que as que levava massas para casa.
O senhor Hakamada foi acusado de ter assassinado quatro pessoas, o dono da fábrica onde trabalhava, a sua mulher e dois filhos.
Esfaqueara-os na sua própria casa.
A polícia, apesar de não ter provas, suspeitou do ex-pugilista que para fazer mais uns trocos trabalhava à noite num bar.
Levaram-no para uma sala de torturas e sacaram-lhe a confissão após 23 dias de espancamentos num interrogatório que o debilitaria para sempre.
4.
O Senhor Hakamada suplicou pela sua inocência.
Que as calças manchadas de sangue encontradas num barril de miso não eram suas – já depois da condenação, e após alguma polémica e muitas dúvidas, a polícia encontrara a prova que faltava, o assunto tinha de terminar por ali.
Anos e anos e anos nisto.
Quarenta e seis para que o processo se reabrisse e a prova incontestável tivesse então surgido.
As calças não eram suas.
O DNA não era o seu, o Senhor Hakamada estava inocente.
Libertaram-no em 2014, mas só agora, há umas largas semanas, o Estado japonês decidiu transferir 1,3 milhões de dólares para a conta do velho desgraçado, pouco mais de 80 dólares por cada dia que esteve preso.
5.
Só que, infelizmente, o Senhor Hakamada vive num mundo de sonhos e de infância.
Brinca com legos e prepara as trouxinhas todas as manhãs para ir à escola primária.
Tem os seus dois gatos a quem alimenta de patés bons e a quem mima como nunca foi mimado.
E em muitas tardes empanturra-se de bolos como se não houvesse amanhã.
O Senhor Hakamada enlouqueceu do tanto que esperou que a porta se abrisse e lhe acorrentassem as pernas para se fazer ao caminho.
Talvez nunca tenha estado tão próximo de uma ideia de felicidade.
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