1.
Este postal é para si, Dona Andreza.
Imagino que tenha estado na estreia do seu menino, que tenha chorado com esta coisa maravilhosa de ele ser tanto, de agora até escrever óperas aplaudidas por milhares de pessoas encantadas.
Quem diria depois de ter passado tanto, depois de tantas dificuldades, depois de tanto sacrifício a fazer o que a maioria das pessoas nem sequer imagina, a lavar a porcaria dos outros, a esfregar o chão da casa dos outros, a lavar pratos em restaurantes, a ser olhada de lado por ser pobre, por ser preta, por ser, aos olhos de tanta gente, uma mulher de segunda.
2.
Querida Andreza, imagino a sua felicidade por ter um filho como o Dino D’Santiago.
Um artista.
Um menino que se fez homem sem se rebaixar, mas também sem nunca perder a ternura imensa pelo mundo.
Ouvi-o a contar – ele próprio o fez na última vez em que estivemos…
… ouvi-o a contar dos seus sete anos quando uma professora primária no Algarve o chamou “escarumba” ou outra coisa assim.
Ou da polícia ter entrado em vossa casa com metralhadoras apontadas às vossas cabeças apenas porque estavam numa casa que era um buraco num bairro desprotegido onde a culpa se decretava pela cor da pele.
O Dino tinha seis ou sete anos, viu tudo e nunca se esqueceu ou esquecerá. Mas nada disso o fez perder a esperança no ser humano, a vontade de fazer a sua parte para que o mundo seja um bocadinho menos contaminado pelo mal.
Sorriu sempre para quem o tratou mal.
E mastigou a vontade de gritar fazendo desenhos com heróis da sua cabeça.
Bandas desenhadas, poemas, canções.
Tornou-se uma estrela.
E agora até óperas faz, querida Andreza.
3.
Lembro-me bem quando ao receber um prémio chamou duas senhoras que trabalhavam na limpeza no Coliseu dos Recreios. Elas muito tímidas, uma cabo-verdiana e outra guineense com o prémio nas mãos…
Recordo a voz do Dino a apresentá-las, a contar-nos que eram elas que limpavam as passadeiras vermelhas. Que era justo que, por uma noite, pudessem desfilar e serem vistas e aplaudidas sem esfregona, sem balde, sem gente a olhá-las sem as ver.
Querida Andreza, um beijinho terno e um abraço de amizade e respeito.
Obrigado à mãe do menino que agora faz óperas.
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