1.
Gisèle é a cara da guerra contra a violência sexual, uma guerra que precisamos de ganhar.
Contra a violência sexual, contra a exploração das mulheres, contra uma desigualdade que continua a existir, agora mais silenciosa, mais envergonhada, mais obscura, mas tão presente como ontem ou há 100 anos.
2.
Gisèle foi drogada pelo marido e serviu de alimento para animais diferentes de todos os outros animais que conhecemos.
Predadores sexuais que se serviam a seu belo prazer do corpo inconsciente que tinham à frente.
O marido recebia dinheiro vivo e em alguns casos, se alguns pervertidos lhe pagassem bem, não se importava de assistir.
3.
Durou dez anos o banquete de horror.
E Gisèle não desconfiava de nada.
Acordava com dores horríveis, dores que se foram tornando piores, mais fundas, uma companhia que passou a existir sempre.
Não falava ao marido das guinadas que sentia por dentro.
E o marido não perguntava.
Na verdade, tinha a coragem de se fazer de vítima – afinal, a mulher estava sempre deprimida, sempre com esgares de dor, nenhum homem aguentaria aquilo, só ele por a amar.
4.
Conhecemos a história.
Tens como eu visto as notícias.
E tens visto como eu a cara de Gisèle no tribunal – os seus olhos corajosos, a sua voz segura, a sua postura feita de um orgulho incrível, um orgulho que nos faz pensar.
Gisèle percebeu que alguma coisa estava mal e a polícia investigou.
O resultado tem sido visto pelo mundo a partir de um tribunal de Avignon…
… 58 arguidos.
Depoimentos chocantes.
Um marido sempre à procura dos cantos onde se esconde sem se poder esconder.
Um marido que assumiu tudo, como se fosse possível assumir o inominável. Olho para aquele homem e só me questiono sobre aquilo que dele não sei e não está a ser julgado.
5.
Mas este postal só foi escrito por causa de uma resposta de Gisèle.
Em frente ao tribunal alguém lhe perguntou qual era o peso da sua vergonha, da sua humilhação.
E Gisèle Pelicot deu a resposta definitiva que terá de ser a nossa quando pensamos nos abusadores, nos que violam, no inferno de estarmos rodeados por tanto mal.
Gisèle, depois de um segundo de silêncio, respondeu:
“Não são as mulheres abusadas que devem ter vergonha. Quem deve ter vergonha são os abusadores, os que violentam. Esses sim, nós não”.
Nada mais precisa de ser dito.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, YouTube e RTP Play.