1.
Logo a seguir ao 25 de Abril tornou-se a Rainha da Noite.
Era diferente dos outros travestis. Antes de se vestir de mulher andara pelo teatro de revista e a sua experiência ofereceu-lhe ferramentas que mais ninguém tinha.
Chamava-se Guida, mas só o era quando o Sol caía.
À luz do dia era Carlos, o menino de uma mamã que lhe aguentava loucuras e transgressões.
A mãe viera da Beira Baixa com uma madrinha. Instalara-se numa casa no centro de Lisboa e foi nos arrabaldes do prédio que conheceu o futuro marido.
Casaram durante a Segunda Guerra Mundial e o Carlos nasceria logo a seguir, ainda Hitler era vivo.
2.
Nunca enganou nos seus talentos.
Dançava, cantava e tinha opiniões sobre os vestidos da mãe.
O pai não achava muita graça, batia-lhe quando chegava a casa bêbado até que um dia o Carlos lhe fez frente – não admitia que batesse também na mãe, ameaçou-o com uma cadeira e aquilo representou para ele um 25 de Abril antes do 25 de Abril.
Durante o fascismo já dançava em festas de ricos, como o badalado encontro na Quinta Patiño, no Estoril.
Gastava o dinheiro em viagens e conhecia gente da alta. Estava tranquilo e protegido.
3.
Quando se dá a revolução, poucos o voltam a chamar Carlos.
Passou a ser a Guida Scarlatty, Rainha da Noite de Lisboa, a mais aplaudida, a mais louca, a mais amada pela mãe que ia aos seus espetáculos sempre vestida branco.
Com os anos, a noite mudou.
O travesti passou a estar ligado a outras valências da madrugada e Guida foi perdendo o espaço.
Continuou a trabalhar só que não era a mesma coisa…
…e a mãe deixou de aparecer mais o seu vestido branco…
…e Guida enterrou o dinheiro que juntara para lhe oferecer o melhor no que lhe restava de vida, era o mínimo.
Visitava-a todos os dias.
E quando a senhora morreu, aos 98 anos, a Guida, ou o Carlos se preferires, não tinha mais dinheiro, fora mesmo à conta.
Teve de sair da casa onde nascera.
Ficou aos caídos.
Mais até do que aos caídos, sentiu-se injustiçado por ter sido esquecido.
Triste pela falta de memória.
Amargurado por nunca mais ter ido a palco.
Guida Scarlatty, a mais icónica travesti portuguesa, está num lar onde é respeitada e reconhecida. No seu íntimo, sonha com uma última noite, um último cigarro, uma última atuação, uma última casa cheia.
Merecia que tal acontecesse.
E eu lá estarei para a aplaudir.
E para o aplaudir.
Ouça o “Postal do Dia” em Apple Podcasts, Spotify e RTP Play.