1.
Clara Pinto Correia nunca foi uma princesa.
Isso era absurdo para quem chegou a acreditar ser maior do que a vida – alguém assim, alguém com fome de rebentar convenções, estereótipos e discriminações, não se poderia conformar com elogios fáceis e pueris.
Quando a conheci, quando a vi pela primeira vez, era luz.
Uma luz forte, arrebatadora, excessiva, absoluta.
Eu era um jovem e imberbe jornalista.
Ela era uma estrela, uma das mais cintilantes, uma menina prodígio que simbolizava um novo país, com mulheres desafiadoras, talentosas, cosmopolitas, arrebatadoras e sem limites para o que desejavam ser.
2.
“Adeus Princesa” consagrou-a como a futura maior escritora portuguesa.
É que a Clara tinha 25 anos quando escreveu o seu livro dos livros, o romance que se lhe colou à pele, o que visto à posteriori talvez a tenha pressionado a ser o que não desejava ser.
Não sei, especulo.
3.
Tinha o panache literário que juntava com o panache da biologia.
Juntava o mundo das letras com o mundo dos laboratórios.
Furava as vidas, procurava oportunidade, deixava tudo em aberto. Queria tudo, ser tudo, ter filhos, apaixonar-se, ser livre e inquebrantável.
Mas rapara…
…falo para ti que não a conheceste.
Não sei bem como te explicar isto, não há palavras que não pareçam palavras de plástico e de efeito, mas ela era um clarão
de energia, impressionava, nunca ninguém me impressionou tanto num primeiro encontro.
4.
António Mega Ferreira, com quem Clara estivera casada, disse-me num almoço o quanto ela era tudo isso, uma velocista mesmo quando estava parada, um turbilhão mesmo quando estava em silêncio.
Poderia ter sido tudo.
E foi muito, foi mais do que a maioria de nós.
E foi também a pessoa que mais me perturbou quando a revi há dois ou três anos.
Olhava-me como se tivesse sido desligada.
A luz tinha morrido.
5.
A vida é isto.
Também é isto.
O sofrimento ou a alegria moldam-nos.
Oferece-nos energia e retira-nos energia.
Julgamos tocar o céu, mas podemos ser despromovidos para um inferno de onde dificilmente se sai.
6.
Conheci duas mulheres distintas que, afinal, eram apenas uma.
Uma parábola do que somos e do que a vida nos pode fazer.
Uma mulher que corria mais depressa do que o mundo.
E uma mulher que passou a correr a par da morte.
Uma mulher que era utopia.
E uma mulher que era desistência.
Clara Pinto Correia nunca foi uma princesa.
Foi simplesmente a mais talentosa de todas as metáforas.
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