1.
Morreu a Madame Pereirinha e eu não a conheci.
Nem a ela nem ao seu sorriso ou à sua voz ou ao Lucas que se habituou a ver a mãe sem cabelo, mas sempre com tantas pessoas à volta, tantos abraços, tantas provas de gratidão.
Não a conheci, não lhe telefonei, não tive o pretexto ou tempo.
Nunca temos tempo para o que tem de ser feito, mas agora que lhe vi o sorriso nas fotografias, os olhos tão bonitos, enormes, curiosos…
…curiosos até ao fim, até ao seu último dia.
2.
Agora que conheço a sua história é ainda pior.
Como me posso perdoar?
Queria ter-lhe perguntado pelos seus vários passos.
O diagnóstico de triplo cancro da mama, um triplo negativo que é das formas mais agressivas, quase uma condenação de novas recidivas e de um coração que passa a estar condenado a andar em bolandas, inquieto, um coração sempre nas mãos.
Gostava de ter sabido do que fazia para manter a coragem, para que o sorriso nunca tenha deixado de sorrir.
Quando tirou as mamas e as reconstruiu.
Quando tirou uma parte do pulmão.
Quando percebeu que havia metástases no cerebelo, que a estrada se estreitara.
Gostava de ter perguntado das várias estações, do que fazia ao desânimo, de que palavras usava para convocar a esperança e não contaminar a casa com tristeza ou medo.
Gostava de ter sabido como fazia para abraçar os outros quando, tantas vezes, precisava ela de ser abraçada?
Como fundou uma revista que serviu para ajudar outras mulheres, como teve a presença de espírito para, em todas as sessões de quimioterapia vestir-se como se fosse para uma festa, com roupa que estreava, com combinações malucas, com um cheirinho bom de um perfume perfeito.
3.
Chamava-se Cristina.
Quem a seguia conhecia-a por Madame Pereirinha, nome de código que inventou para reforçar que na doença, mesmo que o salto fosse para o abismo, conseguiria portar-se como uma senhora, uma madame.
Morreu aos 47 anos, um dia depois de eu ter feito 54.
Ouça o “Postal do Dia” em Apple Podcasts, Spotify e RTP Play.