1.
A minha avó Alice esperava por mim no seu sofá em frente à televisão.
Era uma mulher muito bonita, mas quando dela me tornei íntimo já os anos a puxavam para baixo.
Andava curvada nesses anos em que me esperava sentada no sofá da sua casa da Praça do Chile, a casa onde o meu pai sempre viveu em Portugal. Curvada na espinha, mas direita, sempre direita no seu orgulho e na sua força descomunal.
2.
Fala-se da coragem do meu pai, da sua arrogância face à doença e a um destino que fez por castigar.
Mas se ele era forte a sua mãe, e minha avó, era-o em duplicado.
A tudo pareceu resistir.
À tuberculose e à pneumónica da década de 1920.
À ida dos pais para o antigo Congo Belga – falava-me muitas vezes da viagem que fez num barco parado a meio do oceano por tropas nazis.
Resistiu também a um casamento com o meu avô, bastante mais velho do que ela, uma relação que não foi feliz, mas que lhe ofereceu uma estabilidade e seis filhos.
3.
A minha avó Alice era a única que conseguia quebrar o meu pai, a única que o comovia até às lágrimas, a única que o defendeu nas suas opções, a que nunca hesitou em ser a rede que ele precisava.
O meu pai assumiu muito jovem a sua homossexualidade, mas foi ela que o apoiou para que o preço a pagar não fosse demasiadamente alto.
E quando o pai se tornou um ícone contra o preconceito e o combate à SIDA, ela esteve na primeira linha.
E quando conversávamos dizia sempre:
“Só descansarei, só poderei morrer, depois do teu pai. Não o posso deixar aqui sozinho e desamparado.
4.
A avó viu morrer três.
Primeiro o mais novo, o João.
Depois o meu pai.
E por fim a tia Cristina.
Quando o meu pai partiu ficou aliviada.
Perguntou-me, logo depois do funeral, se eu podia ir jantar lá a casa. Prometera-me o esparregado que só ela conseguia fazer tão cremoso.
Ficámos à conversa de mão dada.
Ficámos à conversa em absoluto silêncio – e eu percebi que começara nessa noite a preparar o caminho para ir.
Ainda viu a minha tia Cristina morrer.
E foi então à sua vida.
5.
A avó Alice é uma das figuras que guardo aqui dentro.
Ainda hoje me lembro das noites de Natal em que comíamos o seu irrepetível Bacalhau à Lagareiro.
Ainda hoje me lembro do dia em que saí de casa da minha mãe para morar com ela – e lá fiquei mais de um ano.
Ainda hoje me lembro do dia em que morreu.
Do dia em que fui a sua casa e pela primeira vez ela não estava.
Ou o meu pai.
Uma casa que pareceu envelhecer trinta anos em apenas dois dias.
Sim, a avó Alice era também a minha casa.
E isso nunca poderá ser corrigido.
Pelo menos nesta vida.
Texto e programa de Luís Osório
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