1.
Foi abandonado durante a pandemia e o velho Bernardino, com mais de oitenta anos num corpo já cansado, descobriu-o a vaguear na rua.
Viu-o uma e duas vezes.
E à terceira já levava preparado um bocadinho de leite numa pequena vasilha.
O gato aproximou-se esfomeado.
Bebeu tudo e aceitou uma festinha e depois outra.
A seguir deu uma turra e foi para o colo de Bernardino que não teve coragem de o deixar na rua.
2.
Os seus planos eram claros.
Podia ficar uma noite e depois logo veria o que fazer – com a sua idade não podia correr o risco de se afeiçoar ao bicho.
Na primeira noite o gato foi para a cama do velho homem.
E na manhã seguinte deitou-se no sofá como se fosse tudo dele.
Ofereceu o primeiro “miau” e Bernardino batizou-o de Garfield.
Sabemos que com nome tudo se torna mais difícil e aqui não foi exceção – o gato ficou e nunca mais se falou nisso.
3.
Garfield vivia para o dono.
E o dono vivia para ele.
Ficavam a ver televisão.
Almoçavam e jantavam juntos.
Adormeciam e acordavam juntos.
E se Bernardino saia de casa, Garfield ficava à janela à sua espera.
4.
O velho cansado morreu num dia muito frio de Inverno e Garfield não comeu durante vários dias.
Uns familiares levaram-no para as suas casas, mas o gato emagrecia a olhos vistos.
Até que um dia, para espanto geral, desapareceu de casa.
Desapareceu das vistas e fez-se à estrada como se tivesse recebido um telefonema de outra galáxia.
5.
Correu dois quilómetros e entrou no Cemitério Municipal da Póvoa de Varzim como se soubesse onde ia.
Uma funcionária foi dar com ele deitado na campa do dono.
Deitado na campa do velho Bernardino como se o estivesse a velar.
Ficou um dia.
Dois dias.
Uma semana.
Uns meses.
E lá continua.
A vaguear pelas campas, a fazer chichi e cocó nas árvores ou nas ervas, e a dormir com o dono numa campa que reconheceu à primeira vista.
Garfield recebe o mimo dos vivos e conhece a linguagem dos mortos…
…a linguagem de quem lhe soprou ao ouvido as coordenadas para não se perder no caminho entre a casa e o cemitério onde nunca estivera.
E depois daí até ao lugar onde finalmente pôde descansar.