1.
Caro Ricardo
Nunca nos vimos, não conhecemos a voz um do outro, mas deixa-me tratar-te por tu.
Sinto-me melhor se o fizer… estar a falar da tua vida e usar o senhor ou o você soa-me a falso.
Na verdade, escrevo-te por causa da tua morte, por causa do dia que já marcaste para a partida, só tu o sabes, mas sei que já o sabes.
Acontecerá na Suíça e organizaste todos os pormenores.
Desta vez, já o confirmaste, não haverá adiamento. Era para ser o ano passado, mas a tua mulher pediu-te para adiares, uma coisa vossa.
2.
Ricardo, a tua história é comovente e impossível de perceber. Nenhuma pessoa é capaz de se colocar na pele de outra, só na teoria o consegue, mas na prática a tua dor é inclassificável e só tu a entendes.
Em 2009 um acidente deixou-te tetraplégico.
Os teus filhos ainda não sabiam ler e tu tinhas o plano de voar como um pássaro, o plano de seres livre e de abraçares o mundo com o teu talento de tornares os sonhos reais.
Deixaste de te poder mexer e a Ana esteve sempre ao teu lado.
Sei que os teus filhos cresceram bem e querem também voar… herdaram de ti esse desejo de liberdade.
3.
A Dignitas já te enviou o dia.
Viajarás para a Suíça onde o suicídio assistido é legal. Dar-te-ão um cálice e adormecerás a ouvir as músicas da tua vida – quem sabe a primeira que dançaste com a Ana, as preferidas dos filhos ou uma que te acalme e aplane o medo inevitável.
É bem provável que não peças nada para dormir na última noite, que queiras estar desperto na tua última madrugada. Depois, já o tens dito em várias entrevistas, no princípio da manhã, tomarás um banho quente e vestirás uma roupa confortável.
4.
Ricardo, sei que estás sempre a rir e que tens 44 anos.
Que os teus amigos te convidam para jantar todas as semanas.
Que tens uma empresa bem-sucedida.
Porra, foges dos parâmetros todos, és uma ovelha fora do rebanho, torna-se difícil escapar aos lugares-comuns, às coisas que já sabes ou que não valorizas tanto como a maioria de nós mortais.
Ainda assim, Ricardo…
… ainda assim deixa-me pedir-te para que não vás.
Pedir-te para cancelar o último dia.
Para não tomares o último banho. Para não estares desperto na última madrugada.
Para não vestires a roupa leve que já guardaste.
5.
Sei que não podes abraçar os teus filhos, Ricardo.
Mas eles podem abraçar-te.
Sei que não podes voar, mas podes fazê-lo de uma outra maneira.
Sei que não podes dar à tua mulher tudo o que desejas, mas podes ajudá-la a cumprir-se como ela te ajudou quando eras completamente livre.
E não te esqueças que ela te pediu para adiares.
Adoro quando me dizem para não ir, para ficar mais um bocadinho.
Ricardo, sabes lá o que acontecerá se não fores.
Irás perder o que não sabes.
Não estarás nos momentos maus e bons dos teus filhos.
Serás apenas uma memória e nos dias sombrios serás o que não estás, o que foi quando podia ter ficado.
Na tua vida sempre gostaste de ser tu a decidir o rumo das coisas. És coerente, não discuto isso, mas pelo menos deixa os teus mais próximos dizerem o que pensam sem serem abalroados com a tua coragem, a tua personalidade e o teu sofrimento.
Deixa-os dizer.
E decide depois com a certeza absoluta de que não és uma ilha, mas um jardim que deu fruto.
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