1.
Contei esta história muitas vezes, acredito que ilustra o modo como eu via o meu pai.
Durante a minha infância não tinha a certeza se me amava como os pais devem amar um filho. Agarrei-me a uma prova inequívoca, uma fotografia enorme de mim em bebé, o pai pregara-a na parede à esquerda da sua cama.
Quando ia a sua casa, a avó Alice sabia que a primeira coisa que eu fazia era correr em direção ao seu quarto.
A avó ficava feliz e tranquila por eu o adorar e morrer de saudades, nunca lhe ocorreu que me esgueirava para o quarto para ver se a fotografia ainda estava no mesmo lugar.
2.
O meu pai deu-me provas de amor ao longo da vida, eu não tinha razão.
Voltei a pensar na sua ausência quando me sentei um bocadinho na Casa do Comum, no Bairro Alto, em Lisboa, um espaço imaginado por um homem que nunca conheci…
… o José Pinho, figura mítica da cultura em Portugal.
Entre tanto mais fundou a Ler Devagar, uma das livrarias mais bonitas do mundo. E fez nascer um dos mais prestigiados festivais do país, o Fólio.
Era um megalómano realista. Ou um sonhador pragmático.
Todos os que o conheceram o dizem.
3.
Quando lá fui, quando andei por aquele espaço de silêncio e apaziguamento, por aqueles três andares com livros em estantes que mais parecem radiografias do que somos, do que nos inquieta, do que nos falta ler, das oportunidades perdidas e das que nos restam…
…quando lá fui perguntei pela Joana, mas não estava.
Quis conhecê-la por me ter recordado do meu pai, quis agradecer pelo seu, pela inquietude que o levou a preencher um espaço que
não existia antes dele, por nos ter oferecido muito e por ter confiado na filha para prosseguir os seus passos.
4.
Dizem-me que a Joana o tratava por Zé.
Que se comoveu quando o pai antes de morrer a intimou a não deixar morrer o que acabara de nascer.
Não havia como lhe dizer que não.
Aceitou prosseguir o caminho.
Alimentar o que o pai construiu.
E fazer sua a Casa do Comum, espaço que José Pinho quis ser de refúgio, de recato, de pausa num mundo tão rápido e tantas vezes tão vazio de profundidade.
Joana não estava quando lá passei.
Mas o seu pai estava.
E o meu também.