1.
Antenor nunca passou despercebido em Marrazes.
Não era fácil consegui-lo com um nome tão fora do normal que levou alguma vizinhança a ir ao dicionário e a descobrir que, afinal, o nome era grego e significava o que se “opõe”, o que nasce para exercer a sua vontade.
2.
Antenor viveu nessa ideia.
Trabalhou, teve filhos, mas na sua vida nunca lhe foi possível qualquer golpe de asa – viveu habitualmente, pagou as suas contas e preparou-se para morrer discretamente, tão
discretamente como vivera naquele pequeno concelho do distrito de Leiria.
3.
Aos oitenta anos começou a envelhecer da cabeça, a ficar mais estranho, mais metido para si, menos sociável.
A família quis levá-lo ao psiquiatra para equilibrar a tendência de inventar coisas, lugares e acontecimentos.
Em agosto do ano passado fez a mala e partiu para Lisboa. Um ataque esquizofrénico, juram fontes familiares.
Não sei, talvez sim.
Ou talvez tenha sido mesmo verdade o que ele próprio afirmou antes de se pôr a caminho.
Detestava não ser livre e ter que fazer o que os outros lhe diziam para fazer…
…além disso, tinha vontade de conhecer Lisboa.
4.
Saiu de Marrazes sem comer uma última refeição do seu prato de juventude, uma fritada feita de entrecosto e morcela de arroz com grelos e batata cozida.
Fez uma mala com quase nada e nem sequer respirou pela última vez os ares da Mata de Marrazes sempre cheia de crianças, parques infantis e oxigénio.
Nunca mais voltaria à sua terra.
5.
Em Lisboa arrendou um quartinho e lá ficou uns dias.
A família sabia onde Antenor estava até deixar de saber onde ele estava.
Deixaram de ter notícias.
Deixaram também de o procurar.
Tinha 85 anos e diz-se na terra que fugira por causa de uma esquizofrenia.
Ou então não.
Ou então foi mesmo uma vontade de ser livre, de conhecer a grande cidade, de respeitar o nome que os seus pais lhe escolheram.
Um herói grego, o homem que se opõe, um homem de coragem e força.
6.
A história não acabou bem, mas pode ser que Antenor seja recordado no futuro como o que tentou ser Ícaro e voar para a liberdade.
Morreu apedrejado numa madrugada fria.
Vivia na rua, perto do terminal de transportes do Campo Grande, e não aguentou as agressões de um outro sem-abrigo, 50 anos mais novo, que desejava deitar-se no lugar onde Antenor estava.
Pode não ter sido isso, pouco interessa.
O que realmente interessa é que conheceu Lisboa antes de voltar a viajar novamente para um lugar sem morada.