1.
Chama-se José Alberto, tem 85 anos e continua tão otimista como quando foi destacado para a Guiné.
Diziam-lhe ser um lugar de morte, um gigantesco charco no meio da selva onde a terra engolia os que por lá passavam.
O Zé Alberto regressou da mortandade sem o sorriso habitual, mas a acreditar que tudo se iria compor.
2.
E tudo se compôs.
Apaixonou-se perdidamente.
Fundou uma família.
Montou casa em Santo António dos Cavaleiros e durante meio século veio a Lisboa para jantar fora e ver as estreias do cinema – sempre às quintas-feiras, sempre com a sua Fernanda… mesmo quando os seus filhos eram bebés ou havia trabalho no dia seguinte logo pela madrugada, aqueles dois não perdiam uma estreia.
Eram cinéfilos.
Viram os clássicos americanos no antigo Monumental, mas fascinaram-se já velhos pelo cinema dos novos talentos, de Almodovar a Lars von Trier, de Fincher a Wes Anderson.
3.
José Alberto adora ouvir rádio quase tanto como gosta de ver filmes.
O pai, transmontano de Valpaços, contaminou-o com o amor pelas vozes. O que se ria quando o velho pai contava que se enamorara por uma locutora da Emissora Nacional, encantara-se pela voz, achara que ela era a tal, mas depois viu-a…
— depois viu-a.
Repara, eu percebo o desencanto.
Ainda no outro dia uma amiga me perguntou pelo José Carlos Trindade e eu não soube o que lhe responder, só perguntei:
– Catarina, queres mesmo conhecê-lo?
4.
Adiante.
O Zé Alberto, que foi amigo dos meus pais, vai ter o seu primeiro bisneto.
E anda louco com a notícia e tão otimista como sempre.
Resolveu fazer uma surpresa e pôs mãos à obra.
No sótão, guardara o aparelho de rádio onde o pai escutava as notícias da guerra, um Stern & Stern onde o Zé Alberto gastou parte da sua juventude a sonhar com o que não conhecia.
Tem 85 anos e ainda não sabe como se chamará o bisneto – mas anda louco com a surpresa que lhe fará no dia do nascimento, oferecer-lhe um aparelho que mandou arranjar na Alemanha, o único sítio onde existiam peças.
Ficou maravilhado quando lhe juraram que tinha conserto.
Tão feliz por saber que o primeiro bisneto, daqui a trinta anos, no dia em que a estação pública fizer 120, ouvirá a emissão especial da Antena 1 na caixa mágica onde aprendeu quase tudo o que precisava de saber sobre a vida.
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