1.
O senhor Carlos era velho quando eu era novo.
E quando começou a patrulhar as ruas de Campo de Ourique eu ainda não existia.
Nunca mais soube do velho Carlos que se “pelava” por beber um galão e comer uma torrada no Canas antes de entrar ao serviço.
Tinha uma roupa que o identificava, um casaco que dizia “Guarda-Noturno”.
2.
Todos o conhecíamos.
E todos lhe dávamos uma nota pequena no final de todos os meses – a soma das notas pequenas dava-lhe para viver e sempre que recebia, não o víamos tanto – dá-me ideia de que gostava da pinga pois vi-o várias vezes em horário de trabalho, já quase de madrugada, na taberna no fundo da Rua Correia Teles.
Quando o dinheiro se ia, voltava ao trabalho e esforçava-se para que déssemos pela sua presença – fazia recados, ia à farmácia comprar medicamentos para quem não conseguia sair da cama, via as torneiras de água e gás, guardava algumas chaves de vizinhos em férias, talvez até lhes regasse as plantas.
3.
Já não há praticamente guardas noturnos.
Restam 80, talvez menos.
Cerca de vinte na Grande Lisboa.
Menos do que isso no Grande Porto.
Gente velha, de um outro tempo.
Que continua a patrulhar os seus lugares de sempre, lugares que já eram patrulhados pelos pais e até pelos avós.
Uma profissão que ficava em família.
Uma profissão que existia num mundo a preto e branco onde os ladrões comiam pastelinhos de bacalhau, iscas e sandes de molho
nas mesmas tabernas em que eles, guardas noturnos de um outro tempo, viviam da noite, como corujas ou morcegos nas Grutas de Mira Daire.
4.
Já não há praticamente guardas-noturnos.
Ou vizinhas que nos batam à porta a pedir raminhos de salsa.
O velho Carlos já abalou há muito.
E os seus colegas no ativo, os últimos oitenta de uma velha linhagem, nunca sabem se este não será o seu último mês, se depois do Natal os vizinhos que lhes pagam deixarão de lhes pagar.
Ficarão para a história como os últimos guardas de uma noite que já não lhe pertence.
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