1.
Desde dia 6 de agosto que hesito em escrever este postal.
Em dizer-to.
Há tantas coisas que nos deitam abaixo que, por vezes, é preferível passar ao largo do que revolver as entranhas.
2.
Já te falei aqui da São.
São Correia, uma das melhores que conheci.
Quando ela estava bem, quando os seus olhos negros pareciam mais vivos do que a vida, sempre com projetos e pessoas que ajudava, recordo-me de pensar que não a entendia.
Os realmente bons não são para mim lineares, pessoas que vivem para os outros, que acordam sempre a pensar no que podem fazer para melhorar a vida de gente comum, que o fazem sem anúncios, prémios, likes, sem porra nenhuma em troca.
3.
A São sempre foi assim.
Vivia para os outros.
O seu riso era contagiante.
E de repente ficou numa cama, sem se poder mexer.
Condenada ao silêncio e à mais cruel doença: a que não contamina a inteligência e o raciocínio rebentando tudo o resto.
Esclerose Lateral Amiotrófica.
ELA, assim se diz abreviando.
4.
Só que a São é a São.
A sua cabeça continuou viva, a fervilhar.
A família arranjou-lhe uma máquina extraordinária que lhe permite escrever mensagens com uma palhinha na boca.
E ela continuou a comunicar nas redes sociais e escreveu um livro a que chamou “Abraço”.
O lançamento foi à porta de sua casa, com centenas de amigos em carros que buzinavam numa celebração que comoveu quem esteve.
5.
Eu não estive.
Fiz só para ela, no seu quarto, o meu monólogo.
Sofri por a ver assim, dependente, sem poder mexer um milímetro da sua pele, mas com um oceano de vida a passar-lhe nos olhos prisioneiros de uma carapaça de morte.
Li o livro e comovi-me.
Perguntei-me, como tantos que o leram, de onde raio vem esta injustiça?
Será Deus que escolhe alguns de nós?
Será a prova de que não existe?
6.
Hesitei antes de escrever.
Desde o princípio de agosto quando a notícia chegou à casa da São.
Brutal.
Chocante.
Inumana.
O seu filho Dinis, miúdo talentoso, músico, performer, socialmente ativo e generoso como a mãe, tinha ido mergulhar e não regressou do fundo do mar.
O Pedro, seu marido.
E o Manel, o seu outro filho, um irmão agora órfão.
Os dois a chegarem ao quarto onde a São percebeu tudo sem que eles tivessem aberto a boca.
Sem se poder mexer, com uma dor impensável a queimá-la por dentro, uma dor ainda mais impensável por não poder gritar, por não poder partir o que encontrasse à mão.
A São.
A mais generosa de todas as pessoas que conheci.
A que fazia o bem todos os dias.
A que a vida condenou (ou terá sido um Deus?) à terrível provação de uma doença impossível.
A pior de todas as adversidades…
… achávamos nós.
Achava a São.
Mas afinal, não.
A vida, ou o que nela é indizível, não ficou satisfeita por ela ter posto a doença no bolso e decidiu fazer pior.
Levar-lhe o Dinis, o filho cheio de luz, o compositor, o pianista e tudo e tudo.
Não regressou do mergulho.
E eu pergunto, porquê, Meu Deus?
Porquê?
Porquê?
Porquê?
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