Enquanto o canhão tarifário norte-americano sacode a economia global e faz estremecer as chancelarias, Trump aprimora o palavrório.
Ontem, deixou o boné em casa e equipou-se de smoking para enfrentar o Comité Nacional Republicano do Congresso. Referiu-se à investida tarifária como “uma guerra contra o mundo” e considerou que os parceiros comerciais agora agredidos estão ansiosos por negociar, prontos a beijar-lhe o traseiro. Ele o disse, sem rodeios: “Kiss my ass”.
Não sendo a expressão verdadeiramente nova na boca do cavalheiro, o actual contexto dá-lhe redobrada flatulência, pedindo a competência satírica das Graças e Desgraças de Francisco de Quevedo que Aníbal Fernandes traduziu nos anos oitenta. Mas os Quevedos não estão à mão de semear.
É certo que, ao contrário do traseiro de Ginsberg, o de Trump não deverá cobrir-se de “cerejeiras em flor”. O traseiro de Trump é, neste contexto, a parte de trás do desastre.
O traseiro de Trump deve ser mais como a bunda de dona Clotilde no conto O Cobrador, de Rubem Fonseca. Com mil desculpas para dona Clotilde, claro.
Na verdade, o traseiro de Trump não deverá suscitar o impulso que levou o grande Fernando Assis Pacheco a tornar imortal o “ouriflâmio cu de Maruxa” que lhe entrou por um poema dentro num certo Agosto em Ourense, nem entusiasmo comparável ao que levou Drummond a enaltecer, no “Amor Natural”, um certo “traseiro marmóreo”. Drummond, lembram-se? “A bunda, que engraçada. Está sempre sorrindo, nunca é trágica (…) A bunda basta-se”.
Noutro contexto, estaríamos apenas perante a jactância de uma linguagem sem esfíncter.
“Meu pobre traseiro”, terá desabafado, num poema, o grande Miguel Ângelo Buanarroti, quando, depois de quatro anos pendurado em andaimes, o corpo dorido por tantas posições incómodas, concluiu a Capela Sistina. Se o disse desse modo, e disse, estava afinal partilhando, humildemente, a exaustão com que fez das fraquezas força para tocar o sagrado.
Quando trata de coisas sérias (sérias nas consequências, não na formulação) Trump tem o recorte literário da rapaziada das obras, em dia mais castiço. Mas não o imaginamos pendurado em andaimes. O que o motiva é antes a vontade (que nem sequer disfarça) de se sentar em cima das nossas cabeças.