O tempo, e sobretudo o arsenal de comunicação que tomou conta das atenções com os sucessivos episódios que os Sex Pistols protagonizaram durante a sua (mas consequente) vida conferiu à expressão “punk” uma carga (de sons, imagens e comportamentos) mais próximos dos acontecimentos que tiveram Londres como epicentro entre 1976 e 78 e, logo depois, outra importante contribuição para a sua história, com geografia na costa oeste norte-americana. Tal como o disco sound, o punk já conheceu mais vidas do que as sete habitualmente apontadas aos gatos. Mas se olharmos para a génese do fenómeno, rumando a Nova Iorque ali entre 1974 e 1977, notaremos que, mais do que um “movimento” com um som e uma imagem transversais aos envolvidos, o punk começou por se definir mais como um código de comportamentos e, sobretudo, uma busca de liberdade e de caminhos alternativos. Entre bairros da zona baixa de Manhattan com rendas baratas (nesses tempos, claro), com espaço como o Mercer Arts Center e, depois, o mítico CGBG’s como palcos de referência, e herdando importantes lições recentes de nomes ligados à emergência de uma cultura alternativa e do garagem rock, ou seja, dos Velvet Underground aos Stooges, juntando ao caldeirão de referências discos e heróis dos anos 50 e 60, eis que, por pelo impacte de um fanzine criado por Ged Dunn cujo número um foi publicado em 1975, a palavra ganhou lastro e cunhou um conjunto de acontecimentos, músicos e, sobretudo, as suas atitudes.
“Punk”, assim se chamava o fanzine, recorria a uma expressão que vinha já a ser usada em textos e discursos associados a caminhos em terrenos do rock underground desde 1970. Se por um lado a memória de uns Ramones, nascidos por aqueles dias naqueles lugares, nos ajuda a aproximá-los do significado que nos habituámos a associar à palavra punk, na verdade os demais grupos e vozes que emergiram da cultura underground nova iorquina em meados dos anos 70 foram os pioneiros desde furacão que, com vistas mais largas ainda do que as de um mero movimento musical, acabou por ter consequências transformadoras em muitas frentes, do som ou da imagem à própria edição musical. Nomes como os pioneiros Modern Lovers, Richard Hell (outro que é talvez mais fácil de associar à “imagem” punk que a memória coletiva mais facilmente fixou), os mais literários Television, Patti Smith (que já tinha poesia publicada) ou Blondie (com faceta pop mais evidente) estão entre essa multidão que fez a primeira geração punk nova iorquina. E desde logo notamos aqui que o que as une nem é a sonoridade nem o look… Assim sendo podemos juntar ao lote mais um nome tão diferente entre os diferentes como os demais. E na verdade acabariam por ser talvez, apesar da extensão maior do percurso de Patti Smith, a banda nascida em terreno punk que mais longe acabaria por chegar um dia, associando aos alicerces outras músicas e culturas que asseguraram a sua sucessiva transformação desde o álbum de estreia em 1977 ao momento em que se despediram em 1991, cedendo uma canção inédita para “Até Ao Fim do Mundo” de Wim Wenders. E se a isto juntarmos a largura de horizontes ainda maior que chegou através dos discos a solo de David Byrne, de Jerry Harrisson ou dos Tom Tom Club (de Chris Frantz e Tina Weymouth), podemos facilmente reconhecer nos Talking Heads um dos maiores legados que o punk nova-iorquino nos deixou.
Separados desde 1991, voltaram a reunir-se há poucos meses para momentos de comunicação associados a uma reedição do seu histórico “Stop Malking Sense” (disco ao vivo e filme-concerto de 1984). Dos Talking Heads acaba de chegar mais uma reedição, desta vez transportando-nos a um reencontro com aquele álbum desafiante de 1977 que se apresentava com o ano como título e uma superfície vermelha, sem fotos nem nada mais (além do nome da banda) como capa. O disco fixava o final de uma primeira etapa de vida para uma banda que tinha nascido uns quatro anos antes, na Rhode Island School of Design, aproximando os colegas David Byrne e Chris Frantz, juntando-os à namorada desde último, Tina Weymouth e, mais adiante, já em Nova Iorque, completando o quarteto com Jerry Harrison, que vinha dos Modern Lovers. Tiveram a sua estreia em palco no CBGB’s (mais mítica a coisa não podia ter sido), ainda antes da entrada de Jerry Harrison, deram um não a uma abordagem de Lou Reed (de quem continuaram amigos) e acabaram por chegar a um acordo com a Sire Records, numa altura em que os primeiros discos de Patti Smith, Television ou Ramones tinham feito do bar no número 315 da Bowery (o CBGB’s) tudo menos um segredo. As sessões amplificaram as possibilidades já exploradas no cativante single de estreia “Love → Building on Fire”, editado no início de 1977, acentuando o ecletismo que traduzia um leque de interesses na verdade algo comum a bandas nascidas entre alunos de escolas de artes. O disco revelaria sobretudo uma paleta de ideias que podemos encarar como art rock, juntando pistas que chegavam ora do R&B ora do funk, da pop ou da folk, somando timbres em arranjos que iam além do habitual trio elétrico (há uma marimba e um saxofone em “First Week/Last Week… Carefree”, ou steel drums em “Uh-Oh, Love Comes to Town”, por exemplo), somando como cereja sobre o bolo a voz com rara teatralidade de David Byrne. Ali nasce o clássico “Psycho Killer” e momentos não menos secundários como “Pulled Up”, “Don’t Worry About the Government” ou “Uh-Oh, Love Comes to Town”, num alinhamento agora enriquecido numa edição Deluxe com 3 CD e um Blu-ray (áudio) que não só junta uma gravação ao vivo no CBGB’s em outubro de 1977 como alguns extras (singles, lados B, takes alternativos), entre os quais há uma versão acústica de “Psycho Killer” com Arthur Russell no violoncelo. “Luxos” da cena downtown nova iorquina de finais dos setentas…
Esta reedição é o mote para uma edição do Gira Discos que olha para o universo dos Talking Heads através dos discos da banda, de experiências a solo dos seus elementos e versões que, ao longo dos anos, foram reinventando as suas canções, surgindo aqui contribuições tão distintas quanto as de Lorde, Angelique Kidjo, os Luna ou os Duran Duran.