Em janeiro de 1983, num tempo de pausa iniciado após a edição no ano anterior do álbum gravado ao vivo na China – que por sua vez fixava o ciclo definido por Oxygène (1976), Equinoxe (1978) e Les Chants Magnétiques (1981) – Jean Michel Jarre recebeu um desafio lançado por um amigo que estava a preparar uma série de exposições de obras de jovens artistas plásticos que, ao invés dos espaços habituais, ou seja, as galerias de arte, iriam decorrer em supermercados, havendo no final um leilão no qual todas as peças seriam vendidas. Jarre aceitou, lançando depois um desafio a si mesmo, que seria o de, tal como os artistas expostos, encarar a sua música como uma obra única, igualmente passível de ser leiloada. E assim nasceu o caminho que o levou a Musique pour Supermarché, o sexto álbum de estúdio do músico francês do qual, de facto, só existe uma única cópia, leiloada, a 6 de junho de 1983.
A música que escutamos neste álbum representa, mais do que um objetivo alcançado, um processo de busca em tempo de transição. Depois do ciclo de três álbuns que lhe haviam dado exposição global entre 1976 e 81, Jean Michel Jarre havia equipado o seu estúdio em Croissy com novos instrumentos e tecnologias, estando então interessado em explorar o potencial da manipulação de gravações de material não musical (ecos da chamada música concreta, de certa maneira, portanto) e também as novas possibilidades do sampling, técnicas e ideias que levaria a uma forma mais bem definida no sucessor Zoolook (1984). De resto, ideias que ganhariam forma definitiva em Wooloomooloo e Blah Blah Cafe, desse álbum de 1984, estavam já aqui a surgir em primeiras versões, o mesmo acontecendo com um fragmento que depois surgiria, com outro desenvolvimento, em Rendez-Vous (1986). Mas a esmagadora parte da música criada para este álbum de 1983 nasceu e ficou limitada ao alinhamento de um projeto que começou a ganhar forma com gravações de campo captadas em supermercados, usadas como bases de contexto para uma música essencialmente ambiental (embora não necessariamente desprovida de pulsação rítmica) que caracteriza um percurso mais exploratório do que o que havíamos escutado na trilogia de álbuns acima já referida.
A música nova criada e gravada por Jean Michel Jarre, acompanhado em estúdio por Pierre Mourey, Frederick Rousseau e Michel Geiss, serviu as exposições que estiveram patentes em supermercados (em França) entre os dias 2 e 30 de junho de 1983 seguindo-se, a 6 de julho, na leiloeira Hôtel Drouot, a venda que acabou com o álbum arrematado por 69 mil francos (seriam perto de 70 mil euros nos dias de hoje, calculando a evolução da moeda e da inflação). Inicialmente mantendo-se como anónimo, o comprador (de nome M Gerard) mais tarde fez saber que a música de Jarre se cruzou com um momento crítico da sua vida uma vez que havia sofrido um acidente de viação, passando por instantes de morte clínica, tendo regressado à vida num momento em que, por perto, alguém escutava Souvenir de Chine, de Jean Michel Jarre. Terminado o leilão os moldes usados para prensar o vinil foram destruídos em público. O álbum, um LP em vinil, tem uma capa em formato gatefold, apresentando no interior uma série de polaroids que documentam a sua criação. Um espaço havia ficado em branco para que, ali, o comprador do disco pudesse depois juntar uma polaroid sua com o álbum nas mãos.
Pouco depois do leilão, Jean Michel Jarre autorizou a Rádio Luxemburgo, que havia acompanhado em direto os acontecimentos de 6 de julho, a tocar, por uma única vez, todo o álbum, de fio a pavio, nascendo dessa emissão os bootlegs que entretanto foram surgindo. Anos depois, no momento em que preparava uma extensa antologia da sua obra, Jean Michel Jarre integrou Musique pour Supermarché Part II no alinhamento da compilação Planet Jarre (2018). O alinhamento total do disco pode ainda hoje ser escutado em várias gravações captadas a partir da rádio, disponíveis na plataforma YouTube.
Texto de Nuno Galopim
A memória deste álbum, e o momento oficialmente editado em disco (Musique pour Supermarché Part II), passam pelo mais recente episódio de Duas ou Três Coisas, de João Lopes e Nuno Galopim.