1.
Encontrei-o duas vezes.
E troquei mensagens com a sua mãe, uma mulher justamente orgulhosa do filho.
A primeira vez que o vi foi dentro do metro.
Estava sozinho e alheado do movimento, olhava para o escuro dos subterrâneos ou talvez acompanhasse alguém pelo reflexo ou imaginasse um plano de um filme ainda incompleto.
Observei-o curioso.
Lia-o no Público e acabara de ver espantado o seu “Aquele Querido Mês de Agosto”, um filme belo e estranho.
2.
A segunda vez que o vi foi num restaurante no Alentejo, em Brotas, perto de Mora.
Estava com a família e eu com a minha.
Ficámos mesa com mesa e procurei um reflexo para lhe vigiar os movimentos. Acenámos com a cabeça como se nos
conhecêssemos – talvez a sua mãe Antonieta lhe tivesse falado de mim, sei lá eu.
Estava inquieto e ao telefone.
Levantou-se duas ou três vezes e preocupado com qualquer coisa que parecia incapaz de resolver.
Ouvi-o falar em francês e em italiano, na mesa e ao telefone.
Era nítido que havia qualquer coisa por resolver numa rodagem que estava para breve – estive quase para o acompanhar quando foi pagar a conta ao balcão, tinha cartas na manga, vira todos os seus filmes, sabia o que dizer.
Não o fiz por falta de coragem e por ele estar fechado para o mundo.
Dentro do seu filme.
O único que eu não conhecia, não me pareceu bem retirá-lo da filmagem antes da filmagem, o que aliás também a sua família tentou respeitar.
3.
Falo de Miguel Gomes.
O melhor realizador no mais importante festival de cinema do mundo, pelo menos para os cinéfilos não há paralelo possível com Cannes.
Miguel Gomes que encontrei num restaurante em Brotas. A minha família e a sua estivemos no mesmo espaço com o seu corpo embora a cabeça nunca lá tenha estado.
Sei agora que a poderia ter encontrado algures na Birmânia no rasto dos seus dois personagens em fuga ou num desejo de encontro, o que vai dar ao mesmo.
Ou então a sua cabeça tinha apenas o desejo de ir dali para fora, a vontade de se fechar mais os seus fantasmas e a história do cinema que transporta desde que entrou uma tarde numa sala da Cinemateca.
Nas duas vezes que o vi lembrei-me de Jean Seberg no colossal “Lilith”, filme de Robert Rossen.
Seberg, internada num hospício, pergunta a Warren Beatty o que há de maravilhoso na realidade?
Ainda parece que a estou a ouvir na sua voz deslumbrantemente psicótica: “What So Wonderful About Reality?”.
É isso, é essa a pergunta que define os artistas maiores, como é Miguel Gomes.
O que há de maravilhoso na realidade que a arte não possa superar?
Texto e programa de Luís Osório
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