1.
Caro André Ventura, desejo falar-lhe de um assunto importante. Sei que é inteligente e parto do princípio de que não acredita em tudo o que diz ou defende junto dos seus fiéis.
Quero falar-lhe de Neemias, não o do Velho Testamento, mas um outro, um menino português, nascido na Maternidade Alfredo da Costa e criado no Vale da Amoreira, bairro difícil na outra margem do Tejo.
2.
O Neemias Queta ganhou o título de campeão da NBA e é o primeiro português a conseguir jogar na liga profissional americana.
Ninguém imaginaria que ficasse num plantel de estrelas, mas Neemias conseguiu-o.
É um miúdo, caro André.
Vinte e três anos, 2 metros e 13 centímetros, filho de guineenses.
Muito preto, muito grande, muito ameaçador.
Não me leve a mal dizê-lo, mas sei (e o André também sabe) que muita gente que o apoia e se baba à sua passagem é a mesma que quando o via ao longe passava para o outro lado da rua.
São os mesmos que lhe chamavam macaco em bancadas de jogos de miúdos.
São os mesmos que em toda a sua vida o puxaram para baixo.
Na escola
A caminho de casa ou do treino
Nos comentários de jogadores das outras equipas, de pais, de colegas na escola e até da família que o fazia por amor.
“Cuidado Neemias, não te metas em sarilhos, não respondas a ninguém, diz sempre que sim para que o teu sonho não morra”.
3.
O Neemias, muitas e muitas vezes, ia a pé de casa para o treino, mais de 10 quilómetros a andar, vinte se somarmos a ida e a volta.
O Neemias morava numa casa pobre, mas de gente inteira e de trabalho, moravam no prédio pretos e brancos. Na sua cama não cabia todo e quando abria a janela também não cabia no que via, nos prédios encavalitados noutros prédios, em alguns amigos que se perdiam para sempre, o seu sonho não cabia ali.
O Neemias era bem-comportado.
Queria apenas jogar basquetebol.
Quando teve o convite para frequentar uma universidade americana ouvi alguns pais do Benfica abanarem a cabeça e sorrirem, no limite os mais otimistas diziam que seria uma boa experiência, nunca escutei alguém vaticinar que o Neemias um dia subiria tal montanha.
Mas ele foi, caro André.
Português, nascido como eu na Alfredo da Costa, filho do senhor Djaneuba que morreu na véspera do seu filho se sagrar campeão.
Não o viu com a taça.
Não ouviu o telefonema que fez para a mãe e a irmã Miriam, jovem basquetebolista como ele.
Tentou tudo e mais alguma coisa para que o seu corpo resistisse à morte anunciada, desejava tanto ver o seu abençoado menino com a taça na mão, talvez fazer um churrasquinho no bairro, mas não foi possível.
O Neemias aguentou-se, festejou e só quando chegou a casa se despediu com lágrimas do que lhe repetia como um mantra:
“Filho, só quero que sejas alguém”.
Caro André Ventura, fale do Neemias e de outros Neemias.
Orgulhe-se deste português.
E trabalhe para que mais como ele possam também ser alguém.
Como o seu pai quis que acontecesse consigo… e muito bem.
Lembra-se do que João Manuel, dono de uma loja de bicicletas em Algueirão, lhe dizia quando era criança?
Lembra-se do orgulho que teve quando o viu encestar a bola dentro do cesto? Lembra-se de quando lhe acenou pela primeira vez no dia em que o senhor saiu de Algueirão para se fazer a um mundo mais largo?
É capaz de não se lembrar. Passo para trás as imagens das suas perguntas àquela mãe no parlamento e o que dizer?
O que dizer da sua falta de memória e empatia?
Que impressão, caro André Ventura.
Que impressão.
Texto e programa de Luís Osório
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