A história da banda desenhada é feita de heróis e vilões e de outras personagens que andam pelo meio. Stan Lee, com os anos, tornou-se o representante da Marvel para milhões de fãs em todo o mundo. Mas a história real não foi assim tão alegre ou inspiradora como o próprio nos vendeu. Ele, na verdade, foi um homem com muitos segredos e muitos mistérios.
É sobre estes aspetos mais ou menos obscuros da sua vida e carreira o prato principal de Ascensão e Queda de Stan Lee, uma biografia de Abraham Riesman editada entre nós pela Kathartika. É uma leitura fascinante pelas coisas que revela sobre o homem e o mito que disseminou à sua volta, um mito construído com base em mentiras, ilusões, e o talento de outras pessoas que não receberam o mérito devido pelas suas criações. E foi um motivo para conversarmos com a autora sobre o livro e as circunstâncias do mito Stan Lee — para ouvir no episódio disponível acima, na RTP Play, ou para ler na transcrição abaixo.
Quando foi a primeira vez que percebeu que Stan Lee era diferente da imagem que gostava de passar ao público?
É uma ótima questão, e eu tento ocasionalmente lembrar-me da primeira vez em que ouvi rumores de que Stan Lee não era exatamente o que dizia ser. Mas não consigo, porque é normal descobrir isso quando se chega a um certo nível na hierarquia dos fãs da banda desenhada. As pessoas começam a segredar “sabias que o Jack Kirby fez mais do que nós sabemos? Que o Stan Lee mentiu sobre isto e aquilo?”. Não soube muitos detalhes até ler o livro de Sean Howe, Marvel Comics: The Untold Story, que aborda mais temas do que o meu livro. A sua descrição do que Stan Lee fez e não fez intrigou-me. E em 2015 comecei a trabalhar num perfil do Stan para a New York Magazine. E foi aí que comecei a escavar a sério, e descobri muita coisa que não tinha sido divulgada, ou que se encontrava apenas em livros menos conhecidos. Eu gostava de dar crédito especialmente a Stan Lee and the Rise and Fall of the American Comic Book, de Jordan Raphael e Tom Spurgeon, que já não está entre nós e a quem eu dediquei o meu livro. Mas esse é um livro curto, não entra em tantos detalhes como se gostaria. E está um pouco desatualizado, foi publicado há vinte anos, mas foi essencial para eu encontrar um ponto de partida para perceber que havia uma história para contar.
Nas páginas com imagens e documentos que encontramos no livro, colocou uma fotografia sua a receber um autógrafo de Stan Lee…
Sim, eu tinha 13 anos.
Nessa altura era um “verdadeiro crente” [True Believer é o título original da biografia]?
É interessante que diga isso, porque em várias ocasiões perguntam-me “quão grande era a influência de Stan Lee quando eras criança”. Mas na verdade, de certa maneira, e como biógrafa, tive sorte porque não tinha essa adoração fervorosa pelo Stan. Adorava profundamente a Marvel e reconhecia, ou era-me dado a entender pela Marvel, que o Stan Lee era um “supremo-qualquer-coisa” da editora. O papel de Stan era sempre dado de forma vaga pela Marvel. Diziam que ele era escritor, mas ele não era o escritor principal das histórias… então apresentavam-no como a figura de proa, basicamente uma pessoa importante. Quando comecei a ler Marvel em 1997, todas as histórias ainda tinham as linhas introdutórias a dizer “Stan Lee Apresenta”. E lendo isso em criança, com esse nível de imprecisão, ficava com a ideia dele ser importante, mas sem saber bem porquê. E algumas pessoas, mesmo nessa altura, apaixonaram-se por ele. Mas nunca foi o meu caso. Não tinha nenhuma antipatia em relação a ele, não desgostava do Stan, mas para mim era uma espécie de figura maior em vez de uma figura que adorava. Dito isto, como fãs temos uma série de ideias sobre a Marvel que temos de pôr de parte antes de começar a escavar.
Escreveu o perfil sobre Stan Lee em 2015, e depois disso precisou de quanto tempo para escrever este livro?
O perfil foi publicado em fevereiro de 2016. Depois o assunto ficou um pouco adormecido por uns tempos, mas depois o Stan morreu em Novembro de 2018, e um editor da Penguin Random House, que tinha lido o meu perfil dois anos antes, mostrou interesse em que eu fizesse uma biografia póstuma. Então ele contactou o meu agente, e tive muita sorte em que ele me escolhesse. Quer dizer, tive de fazer na mesma uma estrutura do livro para o apresentar e mostrar que seria um bom projeto, mas foi bom que me tivesse contactado. Eu fiquei muito lisonjeada. E depois o livro levou cerca de um ano a ser feito. Até foi um processo de escrita muito rápido, no que diz respeito aos livros. Foi assim principalmente porque tinha feito o perfil, que me levou seis meses a escrever, e porque nessa altura já estava a escrever sobre banda desenhada na imprensa há uns anos consideráveis. Então eu já tinha muito material nas mãos, e uma boa compreensão de como trabalhar este campo. E aí levou-me cerca de um ano para fazer toda a pesquisa e escrever o livro.
Uma das coisas que mais me surpreendeu no livro foram as mentiras que Stan Lee contou ao longo da sua vida, sobre o seu passado e o seu trabalho, mas também que muitas das histórias das outras “personagens” desta biografia serem igualmente vagas ou turvas. Há um momento em que fala de Jack Kirby e dos problemas da sua versão dos factos…
Sim, também há buracos na história de Jack Kirby sobre a criação do universo Marvel. Muitas vezes sou acusada de ser tendenciosa em favor de Jack Kirby.
Mas lendo o livro percebemos que não é esse o caso.
Tentei apontar que há inconsistências na versão de Kirby do que aconteceu no início do universo Marvel. E acho que nunca teremos uma resposta conclusiva. Gosto da palavra que usou, “turvas”. Conseguimos ver a forma geral, mas não conseguimos decifrar os contornos específicos, e às vezes é simplesmente ilegível. Temos de nos lembrar, como digo no livro, que esta foi uma indústria sombria por muito tempo. Na América diríamos que era “fly by night” ou “janky” [expressões para descrever negócios clandestinos e situações instáveis]. A indústria dos comics não era levada a sério, e dentro da indústria, não havia muita documentação. Não ficou um rasto de papelada legal dos envolvidos na criação destas personagens. E então um historiador, um jornalista ou um arquivista sofre bastante pelo facto destas pessoas não terem deixado registos de quem estava a fazer o quê. Por isso ficamos com esta imagem estranha em que sim, Jack teve, quase de certeza, mais responsabilidade pela criação do universo Marvel do que nos dizem os registos oficiais.
Mas ficamos a perceber, apesar dessas inconsistências no seu testemunho, que Kirby, e outros autores, foram mais importantes para a Marvel do que se julgou durante muito tempo.
Ele fazia a arte das histórias, e na BD isso não é uma parte menor. E mesmo que tiremos a parte de Kirby ter criado as personagens, dos seus nomes ou poderes, as imagens já fazem parte da batalha. São livros de BD, não prosa. Precisamos das imagens, e às vezes são mais importantes do que as palavras. Mas não estou num dos lados do debate, sou só uma pessoa frustrada, como qualquer um estaria se quisesse perceber o que se passou na realidade. Não tenho respostas conclusivas. Quando comecei a promover o livro, alguém perguntou-me se conseguia resumi-lo numa breve frase. Aquilo que eu pensei é que é um livro sobre ambiguidade, sobre o facto que há algumas questões morais e factuais que não conseguem ser respondidas. E é muito frustrante. A mente humana quer rejeitar essa ambiguidade e ter algo mais certo, mas não vai acontecer. Não temos documentação factual nem uma documentação moral, claro, se o Stan Lee era boa ou má pessoa. Ficou tudo, infelizmente, perdido no nevoeiro. E eu tentei apresentar o material mais concreto possível.
E quando se fala com pessoas que trabalharam com o Stan e só têm coisas boas a dizer dele, em oposição aos testemunhos menos favoráveis de Kirby e Steve Ditko… isso acrescentou outro nível de ambiguidade e dificuldade para o seu trabalho?
Completamente. Há muita coisa que é geralmente aceite nos comics, quase como se fosse senso comum, sobre o que o Stan e o Jack fizeram. Mas assim que eu comecei a escavar, percebi que não existem provas dessas coisas. A mais importante de todas é que… e não estou a dizer que não aconteceu… mas fiquei chocada ao perceber que não há provas de que o Stan Lee criou as personagens que ele disse ter criado. Foi uma ideia que aceitámos como pura verdade, de que ele teve pelo menos algo a ver com a criação destas personagens. Foi quase um ato de fé. Acreditámos cegamente nele, mas a sua história foi sempre mudando, especialmente a da criação do Quarteto Fantástico e de outras personagens. Não havia uma narrativa exata, consistente, dessas criações. E às vezes a sua versão era impossível de levar a sério, porque algumas coisas que ele dizia não faziam sentido nenhum assim que as confrontávamos com um calendário. O Thor é um ótimo exemplo disso. No seu livro The Origins of Marvel Comics, que saiu nos anos 70, Stan disse que, na década anterior, tinha inventado o Thor porque tinha sido entrevistado numa estação de rádio sobre como as personagens da Marvel se estavam a transformar em algo semelhante aos mitos antigos. Mas quando uma pessoa faz as contas de quando o Thor estava a ser criado, a Marvel ainda não se tinha tornado num sucesso gigante. Eu duvido que alguém, vendo apenas as primeiras revistas do Quarteto Fantástico, tenha dito “uau! Temos de ter esta pessoa no nosso meio de comunicação para falar de como estão a ser criados os mitos modernos”. É muito improvável que tenha acontecido. Acho que Stan estava só a inventar uma história sobre como criou estas coisas. Será que ele não se lembrava? Será que é tudo mentira? É algo que não podemos provar, mas descobre-se uma série de momentos problemáticos, quando uma pessoa começa a fazer um mapa de tudo.
O mito de Stan Lee parece ter tido repercussão fora dos EUA, para o livro ser publicado em Portugal e noutros países.
Sim. Especialmente com o aparecimento dos filmes da Marvel. Porque assim que ele começou a fazer aqueles cameos e a aparecer no ecrã, esse foi o passo seguinte daquilo que eu estava a falar há pouco, desta mentalidade “Stan Lee Apresenta”, em que se diz: “aqui está o Stan, que teve algo a ver com todas estas coisas. O que é que ele fez? Não vamos dizer. Mas agora sabem que Stan Lee é importante, e é, de alguma forma, o pai, avô ou padrinho da Marvel Comics”. Ele tinha popularidade a nível internacional antes desses cameos, mas são eles o que o levaram a uma fama colossal no planeta. Até de forma póstuma, porque milhares de milhões de pessoas veem estes filmes. Já quanto aos comics… e esta é uma das coisas mais interessantes sobre o Stan: quase ninguém lê os comics dele. São pouquíssimas as pessoas no mundo que terão lido realmente alguma história de Stan Lee. A maioria dos que se afirmam como fãs de Stan Lee só conseguem lembrar-se de uma frase dele, que é “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. O que nem foi o que ele escreveu, mas sim “com grandes poderes também devem vir grandes responsabilidades”. Mas a questão é: esses filmes são vistos por muitas pessoas. Os comics de Stan estão meio adormecidos nas últimas décadas, ou presos em edições de arquivo lidas apenas pelos fãs mais acérrimos. Acho mesmo que o mito se espalhou no mundo, mas carregado pelos filmes quando se tornaram nesse fenómeno internacional.
Acha que o livro, a longo prazo, poderá mudar a perspetiva do público em relação a Stan Lee? Ou continuará a fazer sentido a frase com que termina o livro, do filme O Homem que Matou Liberty Valance: “quando a lenda se torna num facto, publica-se a lenda”? Ou seja, o grande público vai ver Stan Lee como ele foi, ou vamos continuar a publicar a lenda?
Não sou cartomante, mas espero que dê, pelo menos, uma versão mais robusta da verdade, ao contrário do que me contavam em segredo quando era mais jovem. Mas não sei. O mito é muito poderoso, as pessoas realmente gravitam à volta dele, e não vi, no curto prazo, um desmantelamento do mito graças ao meu livro. As pessoas que querem acreditar no Stan não deixaram de o fazer. Recebi muitas críticas de fãs que diziam “Não preciso ler isso porque sei que é falso”. E bom, o que se pode fazer em relação a isso? Sabemos que não há nada para discutir se a própria pessoa se recusar a ouvir a discussão. Então, espero que este livro sirva mais para as gerações futuras, para quando procurarem uma biografia de Stan, talvez encontrem a minha e percebam que nem tudo é o que parece. Ou talvez Stan e a Marvel sejam esquecidos em 100, 200, 300 anos, e o livro sobreviverá, e as pessoas pensarão nele apenas como uma curiosidade sobre o século XX. Eu já ficaria feliz com isso.
Sim, porque a Marvel não poderá estar eternamente presente na cultura popular…
Eu tenho toda uma teoria de que depois do apocalipse, quando estivermos todos a vaguear pelo deserto, que a Marvel se vai tornar numa religião. Eu acredito mesmo nisto. Conheço fanáticos suficientes deste universo para saber que, se a sociedade entrar em colapso, as pessoas ainda contarão estas histórias e poderão muito bem elevá-las ao nível das Escrituras. Algumas pessoas já fazem isso agora. O público ama realmente a mitologia da Marvel. Não acho que as corporações, seja a Disney [que detém os direitos da Marvel] ou qualquer outra possa durar para sempre, mas acho que essas histórias terão uma vida muito longa. E espero que o meu livro, pelo menos, lance um pouco de luz sobre como é que as personagens surgiram realmente. Eu leio muitos livros de História Antiga e é sempre profundamente frustrante, porque não há nenhum livro onde alguém diga “aqui eu documentei o que realmente estava a acontecer”. Há sempre essas grandes lacunas. E espero que o meu livro, pelo menos, reduza a lacuna de conhecimento sobre a Marvel.