O estado de conflito permanente que os críticos das redes sociais profetizavam parece ter chegado com grande estrondo. Primeiro, gradualmente… e depois, de repente, o discurso das redes sociais contaminou todas as esferas da sociedade.
No início do mês passado, estreou-se um filme que muitos consideram uma das melhores representações do impacto das redes sociais: “Eddington”, de Ari Aster. A história, que decorre em plena epidemia de COVID e das manifestações do movimento Black Lives Matter, mostra o efeito da internet numa pequena comunidade.
Agora, todo o planeta parece ter-se transformado na pequena cidade de Eddington.
Charlie Kirk, Iryna Zaturska e outros atentados
Uma figura proeminente do universo Trump, entre o influencer e o ativista de direita, foi assassinado de forma muito pública, dando origem a uma vaga de informação e desinformação sem precedentes.
Kirk era o típico produto dos novos meios e das redes sociais: discurso radical e polarizador, apostando no engajamento e no clickbait.
O atentado viralizou de forma explosiva, gerando voyeurismo, exploitation e uma histeria coletiva. Para alguns, o caso demonstra os efeitos altamente negativos de um ecossistema mediático sem moderadores.
Em junho, uma ex-membro da Câmara dos Representantes do Minnesota e o seu marido foram alvejados. Rapidamente, a direita começou a espalhar teorias da conspiração sobre o assassino, transformando um cristão evangélico apoiante de Trump num suposto “radical de esquerda”.
A mesma narrativa binária repetiu-se após a morte de Charlie Kirk, quando um senador republicano de Utah foi criticado por usar a tragédia para atacar os adversários políticos.
Estes casos ilustram a solidificação do discurso partidário em torno da violência política, num jogo de “nós contra eles” que mina a confiança pública.
Ainda nos EUA, o assassinato brutal de Iryna Zarutska, uma jovem refugiada ucraniana, num comboio da Carolina do Norte, tornou-se mais um caso de voyeurismo digital e exploração sensacionalista. O crime viralizou, gerando fluxos avassaladores de opiniões e discursos que desafiam as poucas normas que ainda restam nas plataformas.
Nepal em chamas
No Nepal, a faísca que incendiou o país surgiu de um contraste gritante: vídeos luxuosos de influencers e filhos de elites vivendo em opulência, em plena desigualdade estrutural. O descontentamento juvenil, que já fermentava há anos com altas taxas de desemprego, falta de oportunidades e um sistema político incapaz de responder às aspirações democráticas da população, encontrou nas redes sociais um catalisador explosivo.
A revolta ganhou corpo nas ruas, liderada pela Geração Z, e foi reprimida com violência pelo governo, que tentou silenciar os protestos suspendendo as redes sociais. Mas o bloqueio apenas ampliou a sensação de injustiça e sufocamento, transformando a revolta local num movimento nacional que rapidamente ultrapassou as fronteiras digitais.
De Eddington ao Nepal, de Charlie Kirk a Iryna Zarutska, a violência e a polarização parecem hoje indissociáveis do ecossistema digital. As redes sociais não só refletem a realidade: amplificam-na, distorcem-na e, cada vez mais, moldam-na em dias de raiva.
Recomendações
A Kenia Nunes recomenda o podcast “Panic World”, do jornalista Ryan Broderick, especificamente dois episódios relacionados com o tema: “The New Age of Terror” e “Charlie Kirk was Killed by a Meme”, ambos sobre a “memeficação” de atentados na era das redes sociais; e o sonoplasta Guilherme Marques sugere o podcast “Better Offline” e o jogo Silent Hill f, para PlayStation.
O Francisco Merino recomenda a série “The Hunting Wives”, da Netflix, e o livro “Superbloom: How Technologies of Connection Tear Us Apart”, de Nicholas Carr.
O Álvaro Costa sugere o artigo “David Bowie: O pioneiro da internet”, da BBC News Brasil e o documentário “aka Charlie Sheen”, disponível na Netflix.