1.
Não há nenhum festival literário como o d’As Correntes D’Escritas.
É o único que verdadeiramente desafia um tempo em que parece não existir espaço para o silêncio, para a profundidade, para a lentidão – três palavras que um escritor precisa para o ser, três palavras ridicularizadas pelos que vencem, pelos que ganham dinheiro, pelos que têm sucesso.
Quem precisa de silêncio quando temos ruído e animação?
Quem precisa de lentidão quando é a rapidez que define os que triunfam?
Quem precisa de profundidade quando tudo se joga à superfície?
2.
Mas as Correntes D’Escritas têm o peso da Póvoa de Varzim. Sítio mítico de pescadores e mar que traz e leva, lugar de escritores e de perdição, de Camilo Castelo Branco na sua voragem de casino, de Agustina no seu genial e desarmante cinismo, também de Régio, um bocadinho de Eça.
A Póvoa que recebe durante vários dias escritores um pouco de todo o lado. Centenas de pessoas assistem aos debates, aos lançamentos, às dissertações – gente culta e gente quase analfabeta, gente nova e menos nova, gente de direita e de esquerda, gente que se encontra e se abraça mesmo quando não se conhece, como se fizéssemos parte do mesmo grupo, do mesmo rebanho de desesperada vontade de ser mais, de encontrar novas palavras, de salvar o mundo através da escrita, ou de reinventar Deus ou de o matar de vez.
3.
Nas Correntes reencontro Manuela Ribeiro, mulher forte que mobiliza vontades em Portugal e fora de Portugal. A organizadora, a que os escritores veneram como se tivesse recebido o Nobel da Literatura num fim da manhã em Estocolmo.
Porque ela é verdade.
É verdade no abraço aos amigos, mas também é verdade na proximidade com as pessoas mais simples, como a mulher de pescador que resgata o dinheiro do marido para que este não o estoire na primeira taberna em frente ao mar.
4.
Nas Correntes recordo Luís Sepúlveda e a tristeza de ali ter sido o último encontro com leitores.
Nas Correntes inquieto-me com ideias, com livros de que não sei, com poesia dita e por dizer, com gente que parece ser uma biblioteca.
Nas Correntes abraço jovens por descobrir e consagrados, mas sinto a presença dos que se tornaram invisíveis, dos que já não vemos, dos que partiram sem deixar um número ou um endereço, dos que continuamos a revisitar na obra que deixaram e nas conversas pela noite dentro.
Na Póvoa de Varzim há um lugar onde vivos e mortos se encontram.
Um lugar onde me reconcilio com a literatura e o futuro. Um lugar de esperança nas palavras e nas histórias por contar.
Aquilo que na verdade nos distingue.
Saber contar histórias.
Saber fazê-lo em liberdade e por ela.
Texto e programa de Luís Osório
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