É uma das maiores cantautoras do nosso tempo e está a reeditar em discos em vinil uma série de quatro álbuns através dos quais apresenta não só novas gravações das suas canções, mas também uma nova arrumação temática para o que ali nos dá a escutar. A este percurso de revisitação Suzanne Vega deu o nome de uma série: a Close Up Series, com volumes respetivamente dedicados a canções de amor, outras sobre pessoas e lugares, umas mais sobre estados de alma e ainda uma coleção final dedicada à família. Com uma primeira edição em CD feita há cerca de dez anos, a Close Up Series, com algumas novas canções acrescentadas, teve edição numa caixa com vinil colorido em 2022 e surge agora, em inícios de 2023, em quatro discos avulso em vinil negro.
A cantora, que promete nova música para brevemente, passou recentemente por Lisboa para desempenhar o papel de narradora numa nova produção da ópera Einstein on the Beach, de Philip Glass, apresentada na Fundação Calouste Gulbenkian. Foi essa ocasião que falou para a Antena 1. Uma versão editada (e traduzida) da entrevista está disponível na plataforma RTP Play. Aqui, já a seguir, pode encontrar a transcrição integral desta entrevista.
Passaram recentemente 35 anos sobre a edição de Solitude Standing. E então a sua vida mudou… Foi importante ter um disco reconhecido por todo o mundo. Esse sucesso mudou o modo como depois continuou a construir a sua carreira?
Suzanne Vega: Eu tinha uma visão a longo prazo… E então houve esse solavanco inesperado, porque não estava à espera de um sucesso de Top 40… Tinha essa ideia a longo prazo, queria ser como a Emily Dickinson, achava que ia ser descoberta só depois de morta… Tinha essas ideias românticas deste tipo de coisas… E se calhar até é mesmo assim, porque ninguém sabe o que me vai acontecer depois de morrer. Senti as pressões do sucesso, mas tinha um bom empresário. E ele trabalhou logo nos meus primeiros contratos a ideia de controlo artístico. Por isso tive sempre controlo artístico sobre todos os meus álbuns. E isso foi muito importante porque houve pressões da editora, sugestões de produtores, e por aí… Ele disse que não, que esta era a minha visão e que ia fazer o que queria… Então o terceiro álbum chegou e teve umas críticas estranhas e as coisas estiveram um bocado instável por uns tempos… Ao mesmo tempo avancei com confiança porque sabia que tinha esse controlo artístico no meu contrato. Era muito importante e valeu-me a liberdade ao longo dos anos.
Mas mais recentemente reforçou essa noção de controlo sobre a sua obra ao regravar as próprias canções, editando-as numa sucessão de discos a que chamou Close Up Series. Mas não se limitou a regravar, já que as organizou com uma nova curadoria, ordenando-as por temas.
Isto aconteceu bem recentemente. O meu contrato com a A&M acabaria um dia e havia a hipótese de me largarem, o que de facto aconteceu… Então assinei com a Blue Note, com quem tive uma frutuosa relação de dois anos até que fui novamente largada. E então pensei comigo mesma: o que é que quero fazer agora?… Não quero gravar dez canções e depois tentar encontrar uma editora. Decidi então criar a minha editora e regravar as canções para ter as minhas versões poder fazer com elas o que bem entendesse. Poderia vendê-las, licenciá-las… eram minhas! Foi importante fazer este processo por temas porque eu sabia que toda a gente tinha gostado dos meus dois primeiros álbuns e muitas vezes não conhecem nada para além deles. Seria assim bom poder mostrar às pessoas as canções sobre amor, as sobre gentes e lugares, as sobre estados de alma, que são as mais estranhas, e curiosamente a última série acabou a ser sobre a família. Não era algo que antevesse, mas fazia sentido, porque as que ainda tinham ficado de fora tinham essa temática comum sobre a família. Eram as mais folk… Queria assim que as pessoas conhecessem as mais recentes e notassem se havia temas que circulavam à sua volta.
Esta arrumação por temas se calhar até abriu novos pontos de vista para si, a autora das canções…
Sim. Consigo ver ali padrões… Contam uma história. Cada álbum conta uma história. E encontramos uma história diferente quando arrumamos as canções por temas. Aprofunda o foco. Outra coisa que me fez pensar foi o modo de apresentar as canções. A Taylor Swift também regravou as canções pelos mesmos motivos, porque não tinha controlo sobre os masters. Mas ela decidiu regravar os discos de forma fiel aos originais. Eu não o poderia ter feito desse modo… O meu primeiro álbum envolveu músicos invulgares e estranhos. Eles reagiam de forma espontânea. Havia momentos, respirações… Como, por exemplo, quando o Jerry Marotta lançou os instrumentos de percussão sobre um steel drum no final de uma das canções… Foi uma loucura. E como é que se recria isso? Na verdade não se pode. Eu teria de recriar 30 anos de gravações e tentar alcançar as qualidades especiais de cada uma. Isso nunca aconteceria. Tinha comigo o Jerry Leonard, que me acompanha em digressão, que é o meu diretor musical. E fizemos o que achávamos que seria o espírito de cada canção para as apresentar de forma tão limpa e pura quanto possível. Achei que os fãs iam gostar.
Esses discos representam um tempo na sua e nas nossas vidas. Faz sentido regravar e não os imitar…
Sim, senti que era a opção certa tanto para a minha carreira como para as minhas canções. E os fãs gostaram da opção.
O seu disco mais recente de novas canções, Lover, Beloved: Songs from an Evening with Carson McCullers (de 2016), nasceu no teatro. É daí que continuarão a surgir as suas novas canções? Ou vai voltar a criar ciclos de canções?
Vão ser mais ciclos de canções. Esse foi um projeto maravilhoso e já comecei a ultrapassar o que aconteceu. Em novembro de 2019 fizemos um filme sobre a peça, mesmo antes da pandemia. Só estreou este ano no SXSW [South by Southwest], em março, pelo que estamos agora a procurar uma distribuição. O mundo pós-Covid é muito estranho e alguns mercados estão lentos. Vamos ver como corre. Entretanto comecei já a escrever novas canções. Falam sobre coisas que estão a acontecer ou coisas nas quais estava a pensar há já algum tempo. E espero que o disco daqui a um ano. Será mais como as minhas canções habituais.
Como é que, como autora, lida com o mundo em que estamos a viver neste momento?
Basicamente eu e muitas das pessoas que conheço ficámos fechados em casa durante dois ou três anos a ver as notícias na televisão. E a tentar entender o que se passa na política, no mundo, coisas como o aquecimento global ou a guerra na Ucrânia. Estas coisas estão na minha mente. Tenho uma canção chamada Last Train to Mariupol que é sobre a situação na Ucrânia… E há mais canções a surgir… Estou pronta a escrever e a pensar sobre o que podemos dizer, no que posso acrescentar.
Num mundo tão dividido as canções podem chamar atenções.
Sim, e por vezes podem unir as pessoas. Já se provou que as canções podem unir. Mas estes tempos são estranhos. Vivi os anos 60, os 70… Mas esta última década foi diferente de todas. Coisas que nunca imaginaria. Quase ficção científica. Por isso estou pronta para reaparecer com coisas novas.
Recentemente passou pelo palco do Grande Auditório da Fundação Gulbenkian como narradora de uma produção de Einstein on the Beach, ópera de Philip Glass. Como surgiu esta aventura?
Eu conheço o Philip Glass desde há muito. E ao longo dos anos fizemos muitas colaborações, do seu álbum Songs From Liquid Days a Fifty-Fifty Chance, uma canção do meu terceiro álbum. Tivemos muitas oportunidades para ir trabalhando em conjunto. Um dia ele pediu-me o para o acompanhar a um evento de beneficência em Brooklyn, com um coro infantil. Ele faz muito isto, ajuda muito as pessoas. E pediu-me se podia ler o monólogo final de Einstein on the Beach, aquele que fala dos amantes num banco de jardim… Disse que adoraria, pedi-lhe que me desse orientações e ele respondeu que eu deveria, simplesmente, ler… Sem interpretar, sem emoções. Apenas ler. E se terminasse antes dos músicos deveria recomeçar e, quando eles acabassem, eu deveria também acabar… Foi muito, não quero dizer descontraído… Mas essa foi a direção que recebi. Assim fiz e foi maravilhoso e passamos um belo serão e depois fomos comer… Assim, quando o grupo Ictus e o Collegium Vocal Ghent me perguntaram se não me importaria de ser a narradora numa nova produção de Einsten On The Beach, eu respondi logo que sim porque tinha expediência e confiança para o fazer. Eu tinha visto o Einstein on the Beach em 1984 na Brooklyn Academy of Music (BAM) e por isso tinha memórias nítidas dos vários narradores e de como liam. A Lucinda Childs, por exemplo, era muito seca e divertida. Apresentava o seu monólogo como se estivesse aborrecida. Mas eu faço-o de uma forma diferente. Então pensei que ia ser divertido.
Usa aqui a voz de uma forma bem diferente do que costuma fazer nos seus discos. Mais precisa no ‘tempo’… E, ao contrário das suas canções, estas palavras não são de sua autoria… Como se adaptou a esta nova forma de usar a sua voz?
Foi surpreendentemente fácil. Quando li o texto pensei em algumas ideias, que o ia tratar assim e daquela outra maneira… Como fiz teatro na faculdade e tenho um one woman show sobre a obra de Carson McCullers, então pus-me a pensar sobre como iria abordar Einstein on the Beach. Então ouvi as gravações que estão feitas… E concluí: afinal não é isto. Isto aproxima-se mais do que fazemos quando rezamos. Sou budista e ao serão eu recito o Lotus Sutra em voz alta no sânscrito original, que é uma língua que não conheço. Tenho de o fazer depressa, com ritmo… E segui esse caminho… O caminho de uma prece falada. Rápido, no tempo e no seguimento das demais coisas. Não se pode hesitar, tem de se avançar até ao fim… De vez em quando junto emoção, porque as palavras têm significados… O Philip viu… Talvez ele quisesse menos emoção. Mas eu sinto que tenho de juntar alguma para as coisas terem significado.
Esta é uma versão de concerto desta ópera. Não se trata de uma produção clássica com encenação… Mas mesmo assim fazem mais do que o habitual nestas versões de concerto…
Sim, há algo mais e até é uma ideia simples. Há uma espécie de praia em volta dos cantores. Por isso, quando não é necessário que estejamos em palco, porque há pausas – e ainda bem porque é uma produção longa – podemos ir até “à praia”… Podemo-nos deitar no chão, sentar numa cadeira, ler um livro, colocar uns óculos de sol. Não necessariamente de biquini… Mas podemos andar por aquela praia em volta de todo o palco. Há ainda uma outra ideia, a de que somos músicos a trabalhar… Como que músicos a ensaiar… É uma ideia menos espetacular desta ópera, mas mesmo assim tem a sua visibilidade formal…
Apesar de encarada como ópera, Einstein on The Beach vem de um espaço distinto do mundo mais canónico da ópera…
Nos meus dias de juventude eu dançava e conhecia Philip Glass e Steve Reich porque os coreógrafos usavam a sua música. Não havia essa ideia de minimalismo embora, curiosamente, muita da inspiração mais profunda de Philip Glass tenha vindo da Índia, quando ele estudou a música indiana. É aí que estão as raízes da ideia de haver frases circulares com ligeiras mudanças. É daí que vem… Uma vez mais essa é uma demanda espiritual. Ele foi à Índia procurar espiritualidade e isto foi o que ali encontrou… Vai para além do teatro experimental dos anos 70. Porque contém essa demanda espiritual.
Como lembrou há pouco, iniciou o seu relacionamento com Philip Glass em Songs From Liquid Days, um ciclo de canções de 1986 no qual colaboraram também nomes como os de Paul Simon, David Byrne ou Laurie Anderson e que ajudou derrubar eventuais barreiras entre os mundos da música pop e os da música contemporânea…
Foi entusiasmante poder trabalhar com o Philip Glass tão perto do início da minha carreira. O disco saiu em 1986. O meu primeiro álbum tinha sido editado pouco antes, tinha causado algum impacto e então eu estava a preparar o seguinte. Em 1986 não só trabalhei com o Philip Glass mas também com o então super cool DJ Arthur Baker, que na altura era o crème de la crème nas remisturas para a música pop. Senti que nesse ano defini o meu território. Podia trabalhar com o Philip Glass num mundo e com o Arthur Baker num outro mundo. E isto foi bem antes da outra remistura. Então senti-me confiante e feliz com estas escolhas. Gosto do Philip pelo modo como tem uma mente aberta, pela sua dedicação à sua arte. Que é consistente e é a força motriz da sua vida e de todo o trabalho que já fez.
Fez duas canções para o álbum Songs From Liquid Days. Surgiram primeiro as palavras ou a música?
Fui ter com o Philip à casa dele. Ele abriu a porta. Eu levava uma pasta com letras que tinha escrito em várias etapas mas que ainda não tinha usado e estava a comer um cone de gelado. Ele olhou para mim e disse: se soubesse que tinhas fome eu teria feito um almoço para ti. Mas respondi que não era preciso estava um dia quente, e que não queria que tivesse trabalho a fazer-me o almoço… Comi o gelado depressa e logo nos sentámos a trabalhar. Este foi o episódio engraçado do nosso primeiro encontro. Mostrei-lhe então a pasta e ele leu tudo com atenção. Uma das letras era semelhante a algo que já estava a fazer, por isso não a usou. E acabou a escolher estas duas, sem qualquer relação entre si. O Freezing e oi Lightening. Disse que tinha destas porque mostravam um mundo apocalíptico do ponto de vista de forças da natureza. Eu nunca tinha notado esta relação entre ambas, mas ele tinha razão! Ele tem uma mente muito analítica. Fiquei impressionada pelo modo como as escolheu… E logo se ofereceu para colaborar comigo no futuro, caso eu precisasse de um arranjo de cordas, o que acabou a acontecer em 1990. E aí fiquei interessada então a ver o que ele ia fazer com a música. A que eu tinha originalmente era bem diferente da que ele depois orquestrou.
Freezing e Lightening são quase polos opostos no ciclo Songs From Liquid Days. O Lightning é quase pop. E o Freezing é uma das mais inimistas do disco…
Foi interessante ver como ele pegou nas palavras… Foi fascinante.
E o trabalho vocal? É também, em ambos os casos, bem diferente do que faria em canções suas.
Sim! A Linda Rondstat tem aquela bela voz rouca… E o modo como entoa a palavra Freezing no final é mesmo intensa. E a Janice Pendarvis tem aquela voz linda, de grande amplitude e poderosa. Ambas muito diferentes do que eu faria. Mas gostei muito de participar neste projeto.
Entrevista de Nuno Galopim