Quantas “obras” cabem dentro de uma vida? Cada caso é um caso diferente. Mas Scott Walker desafiou como poucos aquela ideia de que de um artista esperamos que siga este caminho porque antes andou por ali. Do teen star americano dos anos 50 ao autor de discos que revelaram outras dimensões para a sua voz no final dos anos 60, do percurso conjunto nos Walker Brothers ao rumo visionário a solo que gerou discos tão cativantes como perturbantes depois dos anos 80, Scott Walker teria completado esta semana 80 anos de vida. Deixou-nos em 2018, aos 76 anos, podendo todos nós encontrar na obra os passos de alguém que procurou sempre olhar para além do seu tempo e do seu espaço. Mesmo habitando muitas vezes nas periferias das atenções, é difícil não nos cruzarmos com algumas canções suas ou as marcas que em outros ele deixou. E entre os que o admiraram e assimilaram estão nomes como os de David Bowie, Thom Yorke (Radiohead), Marc Almond, Julian Cope, Neil Hannon (dos Divine Comedy) os Pulp e, entre nós, JP Simões, Jorge Palma, Xana, Raindogs, Plaza ou Flak… Foi um dos grandes responsáveis por levar a música de Jacques Brel a quem ouvia preferencialmente canções em língua inglesa. Compôs para a voz de Ute Lemper. Produziu um álbum dos Pulp…
Norte-americano, natural do Ohio (nasceu em Hamilton em 1943), Scott editou os seus primeiros discos em finais dos anos 50, então moldado segundo as normas dos primeiros teen idols. Depois de iniciada uma carreira como ator ainda bem jovem, estreou-se discograficamente como Scott Engel (o seu verdadeiro nome era Noel Scott Engel) em 1957 com o single When is a Boy a Man. Sem se afastar muito desses terrenos de uma pop ligeira para consumo dos adolescentes da época, continuou a gravar ora a solo ora através de bandas como os Moongoers, The Chosen Few, The Newporters e The Dalton Brothers antes de, em 1964, se juntar a John Maus e Gary Leeds para com eles formar os Walker Brothers que lhe dariam um estatuto de grande popularidade. Não eram nem “Walker” nem irmãos, mas o coletivo ganhou corpo comum, criou para si um público e deu a Scott um novo nome artístico.
Contudo, a consciência da limitação dos formatos pelos quais se expressava a música dos Walker Brothers e a progressiva formação de um gosto a seguir por caminhos diametralmente opostos aos do gosto teenager de então – passando por Beethoven, pelo jazz, o cinema de Godard ou de Bergman – acabaria por conduzir a uma (primeira) separação do trio, devolvendo Scott Walker a um percurso em nome próprio. Mas o homem que editaria o seu primeiro álbum a solo em 1967 estava já longe da teen star que somara êxitos com Pretty Girls Everywhere, Make It Easy On Yourself ou The Sun Ain’t Gona Shine Anymore entre 1965 e 66. Editado em setembro de 1967, Scott mostrava desde logo na foto da capa um rosto que recusava olhar para a câmara, escondendo os olhos com uns óculos escuros. “Há ali uma privacidade a ser defendida”, descreveu Rob Young no booklet da edição de uma caixa que reuniu os álbuns de 1967 a 1970, acrescentando que, ali, “coisas da infância estão assim a ser arrumadas”.
E assim era. Um Scott Walker existencialista emergia naquele instante em que o rapaz se afastava e cedia o palco ao homem. As vivências recentes entre concertos de música clássica, uma admiração pelas bandas sonoras assinadas por Michel Legrand e Ennio Morricone (mais tarde gravaria um disco com música de cinema) e a pop mais sofisticada que chegava de França ajudaram a definir um patamar que definiu o terreno onde emergiram as novas canções. Mas a maior das descobertas que esse disco de 1967 denunciava era a da música de Jacques Brel. O grande cantautor belga – um dos maiores de todos os tempos – tinha abandonado os palcos em 1966, mas foi num musical, com letras traduzidas para a língua inglesa por Mort Shuman, que Scott Walker contactou pela primeira vez com aquela que seria uma das mais marcantes forças criativas na definição da sua personalidade musical desta etapa. A força daquela escrita (das palavras aos temas controversos), o fulgor dos seus arranjos e pujança interpretativa de Brel arrebataram-no. E durante três discos (entre 1967 e 68) gravou três versões de Brel por cada LP, que mais tarde seriam reunidas na compilação Scott Walker Sings Jacques Brel, em 1981.
Procura novos caminhos, alarga os horizontes dos arranjos, explorando as potencialidades dos sons da orquestra. Nascido em contraciclo num verão que assistia ao florescer definitivo do psicadelismo, o disco de estreia a solo definiu um modelo que seria retomado, sob aquelas diferenças características da “evolução na continuidade”, nos discos Scott 2 e Scott 3 (onde surge a canção 30 Century Man). A grande mudança chegaria depois em Scott 4 (1969), o primeiro dos seus discos integralmente feito apenas de canções de sua autoria. Scott 4, que edita originalmente como Nigel Scott Engel, representou, contudo, e depois de sucessão de sucessos, o seu primeiro fracasso comercial. As canções estavam já menos focadas num só caminho e muitas vezes pareciam nascidas de fragmentos de ideias. O seu futuro começava ali.
Em 1969 surge ainda um outro disco, que corresponde a um dos menos conhecidos da sua carreira. Com o título (bem explicativo) Scott – Scott Walker Sings Songs from his T.V. Series, recolhia canções que o músico levara ao programa que então apresentara na BBC. Não havia ali originais seus, apenas uma mão cheia de versões de canções que, na sua maioria, ou são baladas de imponente alma orquestral ou standards, seguindo caminhos não muito distantes dos que ensaiara nos três primeiros discos a solo. Apesar do impacte comercial que este outro disco teve na época, o álbum pode não ter agradado muito ao cantor. E representa, juntamente com The Moviegoer (de 1972) e Any Day Now (de 1973), um dos três títulos da obra discográfica de Scott Walker que durante muito tempo estiveram descatalogados. Entre esta série de títulos surgiu, em em 1970, o álbum ’Til The Band Comes In que, com outro reconhecimento futuro da parte do próprio músico, representaria o mais visível dos discos da primeira metade da década de setenta, antes portanto da curta reunião dos Walker Brothers, que gravaram novos discos entre 1975 e 1978.
Depois de um silêncio, o regresso, em 1984, com Climate of Hunter, mostrava já algo completamente diferente. O desafio voltava a corroer a alma de Scott Walker e então nascia um disco que, tal como os de finais de 60, se mostrava bem distante das tendências ao seu redor, mas que ao mesmo tempo traduzia assimilação de sinais dos tempos nos sons, nos instrumentos, na produção. A voz apontava, contudo, para outros destinos mais distantes. Sem então o imaginarmos, começa ali a desenhar-se o Scott Walker “tardio”, um visionário que abandona as formas mais clássicas da canção popular para, daí em diante, procurar uma música exploratória, na qual o canto, a composição e os arranjos revelam desejos de busca acima das convenções e dos géneros musicais. Aquela ideia das “barreiras” entre formas e géneros teve aqui um espírito demolidor. Não houve muro que lhe resistisse. Porque se limitou a seguir o seu caminho.
É no assombroso e profundo Tilt (1995) – disco que pode causar alguma perplexidade num primeiro contacto para quem guarde a imagem do Scott Walker dos álbuns orquestrais de finais dos anos 60 – que emergem sinais definitivos de uma nova visão que desconstrói ideias e, mais do que dar-nos respostas claras, prefere lançar-nos em caminhos de busca, feitos de sombras, de tensão, como se nos convidasse a entrar, visceralmente, nas entranhas da sua visão artística. A Tilt juntou-se, em 1999, a banda sonora de Pola X de Léos Carax e a composição de dois temas para um álbum de canções de Ute Lemper (The Punishing Kiss onde figurava, ainda autores como Neil Hannon, Nick Cave, Tom Waits, Elvis Costello e Philip Glass).
Foi novamente longa a pausa até que, em 2006, surge um novo disco. The Drift, editado pela 4AD, mergulhava ainda mais fundo rumo a um desejo de abstração, mas procurando encontrar um sentido de coesão e mesmo homogeneidade entre as canções, como se de um ciclo se tratasse. No disco Scott Walker liberta-se definitivamente do esqueleto da canção e saboreia uma espécie de deriva surrealista entre elementos de noise industrial, colagens, sugestões de música concreta, passagens orquestrais, atonalidade, art-rock para guitarras, ambientes sombrios. E por cima lança palavras crípticas e ideias apocalípticas numa voz quase operática, profunda. Inclassificável. The Drift é expressão artística de um tempo de loucura global, de violência e alienação. Mas representaria pesadelos concretos ou era antes uma mera divagação estética? Leram-se então comparações ao Pierrot Lunaire de Schönberg, referências a Xenakis, a Ligeti… Usemos antes a linguagem sugerida pelo próprio Scott Walker, e entendamos The Drift como uma peça que visa a “sedução” pelo incómodo que inicialmente provoca, um pouco como Francis Bacon pode causar pela sua pintura.
Percussões insistentes abrem, depois, o alinhamento de Bish Bosch, que surge seis anos depois de The Drift. Esse é um disco onde Scott Walker tanto explora o som de lâminas que se esfregam entre si (em Tar) como aprofunda o trabalho com a orquestra. Trabalho que, como ele na altura explicou, é feito em busca de ruídos, texturas e grandes pilares de som, em detrimento da mais frequente procura de arranjos de arrumação elegante. Num texto então lançado no microsite que a 4AD criou para apresentar o álbum, o título era explicado como juntando uma alteração da palavra “bitch” com o apelido do pintor renascentista Hieronymous Bosch. E, como observou Rob Young (editor da The Wire), a música de Scott Walker é de facto feita de pequenos detalhes, ações e formas, tal e qual alguns dos quadros de Bosch.
Desafiando-nos a ouvir assim a sua música com disponibilidade para a ela regressar e aos poucos nela sentir pequenas obsessões e, assim, descobrir portas de entrada, que geram a descoberta e um progressivo entendimento. E as visões e os temas. São coisas do real ou do mundo imaginário? Bom, em The Night The Conductor Died evoca a execução de Nicolae e Elena Ceaușescu em 1989. A morte, a dor, são temas que passam entre composições assinadas por um reconhecido pessimista que vê as suas canções como seres com alma espiritual. E onde o cinismo não tem lugar. Do trabalho tardio de Scott Walker contam-se ainda mais um álbum que continuou a exploração das possibilidades que o músico colocou perante a sua música nos últimos anos. Scoused, coassinado com a dupla de drone metal Sunn O))) e as bandas sonoras de dois filmes de Bradley Corbet – A Infância de um Líder e, depois, Vox Lux.
Em 2007 na Berlinale foi apresentado o documentário 30 Century Man, filme de Stephen Kijak (um antigo discípulo de John Cassavetes) que inclui imagens de trabalho recente de Scott Walker em estúdio e depoimentos de músicos como David Bowie, Brian Eno ou elementos dos Radiohead. Bowie foi sempre um seu confesso admirador, chegando a gravar uma versão de Nite Flights, dos Walker Brothers, no seu álbum Black Tie White Noise (1993). Entre as versões de canções de Scott Walker que mais se destacaram contam-se ainda uma leitura de Big Louise por Marc Almond (no seu projeto Marc and The Mambas) ou uma de Mide Ure para o clássico No Regrets dos Walker Brothers. Na banda sonora do documentario de Stephen Kijak há uma série de novas abordagens a canções suas por nomes como os de Laurie Anderson, Saint Etienne ou Peter Broderick, Dot Allison, entre muitos mais. Em 2005 a editora independente portuguesa Transformadores editou o tributo Angels of Ashes no qual encontramos versões de canções de Scott Walker por Xana, Flak, Jorge Palma, JP Simões, Plaza ou Raindogs, entre outros.
Texto de Nuno Galopim