1.
A Câmara do Porto aprovou que Gisberta será o nome de uma rua no Bonfim, perto do lugar onde foi assassinada.
Passaram quase vinte anos.
A autópsia provou que morreu a 22 de fevereiro de 2006, dia em que foi atirada a um poço pelos miúdos que a “assassinaram” durante vários dias, catorze miúdos entre os 12 e os 16 anos que a espancaram aproveitando os furos que tinham nas aulas na Oficina São José e no Liceu Pires de Lima.
Um festim que durou sete dias.
Pedradas.
Pontapés.
Pauladas.
E uma curiosidade crescente de saber se aquela mulher era um homem, uma vontade de a despir por completo para saber se tinha uma pilinha.
2.
Há quase vinte anos, naquele buraco com um poço e um balde, foi espancada durante sete dias.
À vez.
Em grupo.
Por ser transsexual.
Por ser pobre.
Por ser brasileira.
3.
Gisberta que nasceu Gisberto como o pai.
Era a última de sete irmãos, o benjamim que deixou muito feliz o pai. Angelina já não conseguia ouvir o marido e deixou-o até escolher o nome.
Gisberto, como ele.
Só que ele cresceu menina.
Vestia as roupas das irmãs.
A mãe explicava que era por excesso de mimo e o pai alarmou-se com o seu fado, logo o rapaz que escolhera para ver a bola com ele, logo o seu pequenino que imaginou ser o perfeito?
O velho Gisberto morreu cedo e o mais novo libertou-se.
Fugiu do Brasil por causa das ameaças em São Paulo aos transsexuais e chegou a Portugal com vinte anos.
Uma mulher bonita que fez furor e parava o trânsito do Porto. Em alguns espetáculos da noite vestia-se de Marylin com um vestido cor de rosa e um lacinho atrás.
Anos em que pensou poder apaixonar-se e formar a sua família. Não lhe foi possível.
4.
A dependência da droga e a doença tornaram-na mais frágil. O seu corpo emagreceu, os seus olhos embaciaram e foi mudando de casa e de vida até que não lhe foi possível pagar o mais reles quarto de pensão.
Descobriu um buraco com um poço, mas manteve contacto com amigos que a ajudaram.
Ao seu médico mostrava fotografias de bebé e de miúda pequena a brincar com os irmãos ou no colo do pai Gisberto.
Apesar da insistência nunca quis levar os amigos que lhe restavam ao lugar onde dormia. Era a sua privacidade, o seu derradeiro reduto.
O lugar que foi encontrado por uns miúdos.
Que a espancaram à vez e em grupo.
Que lhe despejaram o balde para cima e lhe chamaram nomes.
Que a atiraram para o poço ainda viva.
A filha mais nova de Gisberto vai ser nome de rua no Porto.
Um pai que, afinal, tinha toda a razão: o seu mais que tudo estava mesmo destinado a não ser esquecido.
Texto e programa de Luís Osório
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