1.
Vi e revi a entrevista do ator Manuel Cavaco a Tânia Ribas de Oliveira, na RTP.
Foi dos momentos mais fortes dos últimos tempos.
Pela verdade, pelos silêncios, pelo sentimento de que somos cúmplices deste modo de fazer as coisas, pela evidência de que este tempo é injusto para quem envelhece, para quem não tem uma imagem de vencedor, até para quem não é jovem e bonito como uma embalagem feita na melhor agência de publicidade.
2.
Manuel Cavaco já fez tudo no cinema, no teatro, a fazer vozes em dobragens, na televisão.
Foi ator principal e secundário, vilão e bonzinho, sedutor e boémio, pobre e rico.
Trabalhou com o meu realizador português preferido, o Fernando Lopes. Também com o António Pedro Vasconcelos ou o José Fonseca e Costa.
Era unânime dizer-se que o Manuel Cavaco não era apenas um ator, a sua presença ajudava os encenadores e realizadores, a sua inteligência e experiência, também a sua cultura, eram mais-valias na altura em que isso se premiava.
3.
Naquela conversa, Manuel Cavaco confessou que a sua carreira acabara.
Que não havia mais papéis para ele, que não havia papéis para velhos.
Que a indústria deseja a juventude, não quer contar histórias de fim, que deprimam, que entristeçam, quer futuro, homens e mulheres que possam ser consumidos como um Big Mac ou umas asinhas de frango que matam a fome de superfície.
Isso ele não disse, estou eu a dizê-lo.
Manuel, feito de silêncios e tempo, limitou-se a confessar que para ele era parágrafo, que fora bonita a sua carreira, mas que já não havia mais espaço para um homem como ele, para a sua voz gasta com tantos personagens, palcos, livros, cansaço.
O resto deixou à nossa imaginação e à nossa consciência.
Por isso, acrescentei.
4.
Manuel Cavaco, nascido de uma família de gente do teatro amador, nascido sempre com a marca de que a verdade só é possível através da ficção, que a verdade só bate à porta quando representamos as palavras certas e nos colocamos em causa assumindo papéis que nos aproximam à realidade dos outros e do mundo.
Apareceu-nos magoado, mas conformado.
Triste, mas lúcido.
Apareceu-nos sem papéis, sem palco, sem possibilidade de continuar até ao fim a perseguir a verdade.
Já não há papéis para velhos.
Um dia, talvez brevemente, deixará também de haver papéis para mim.
Eu sei isso.
Texto e programa de Luís Osório
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