1.
Francisco deitou-se ainda no dia da Ressurreição e já não acordou aqui.
Não sei onde está, por onde agora caminha, se finalmente se sente livre para passear pelas ruas onde o choram ou se preferiu voltar a Buenos Aires para se despedir da infância no seu Bairro das Flores.
Imagino-o a regressar atrás para um último beijo à mãe Regina que o chamava por uma janela pobre de Buenos Aires – o pequeno Jorge perdia-se nas horas e a mãe avisava-o do almoço já pronto na mesa.
Imagino que tenha regressado para recordar alguma conversa com o pai Mário, um homem bonito que escrevia poemas em pistas de tango.
Talvez se tenha despedido da criança que jogava à macaca e se apaixonou pela doce Amália a quem escreveu uma carta de amor não correspondida.
Certamente que voltou ao Estádio do San Lorenzo onde festejou outra vez o título de 1946.
2.
Ou então não foi nada disto.
Ou então Francisco está mais acordado do que nunca e o seu espírito vagueia pelos lugares onde as ervas daninhas se infiltraram como uma gangrena – os lugares dos enjeitados, dos esquecidos, da amoralidade, da ganância, do sangue de Gaza ou na Ucrânia, dos milhões e milhões de pessoas que circulam sem destino, sem sítio para regressar, sem casa.
3.
Talvez Francisco esteja na Sala Oval ou no Kremlin.
Talvez passe pelo gabinete de guerra de Israel ou pelos que envenenam o nome de Deus e do seu filho com discursos de ódio e ressentimento.
Talvez esteja acompanhado por um coro de anjos capazes de um milagre.
Talvez recite aquele verso de Jorge Luís Borges:
“Não odeies o teu inimigo, porque, se o fazes, és de algum modo o seu escravo. O teu ódio nunca será melhor do que a tua paz.”
Ou talvez seja demasiado tarde e Francisco já não seja Francisco.
Ou talvez não.
Ou talvez Francisco esteja já à direita do lugar onde Deus lançará um sentido para esta falta de sentido.
Ou então Francisco continua a sorrir na janela de onde se despediu antes de se deitar ainda no dia da Ressurreição.
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