1.
Querida Júlia,
Pelas minhas contas estás quase a fazer 27 anos.
És uma estrela, é difícil saíres à rua sem escapar ao assédio das pessoas que te admiram, invejam, desejam ou simplesmente qualquer outra coisa que as faz virar ou baixar o olhar quando passas.
Tens agentes que tratam dos teus compromissos, convites inadiáveis para séries, novelas, filmes, peças de teatro, desfiles, sessões fotográficas, entrevistas e até castings noutras fronteiras.
Calculo que haja dias que te sentes imparável.
Calculo também que haja dias em que te sentes no fundo do poço.
Tudo normal.
2.
Querida Júlia Palha.
Quero falar-te de uma mulher que não conheceste.
Da tua mãe, a Ana.
Agora, sorriste.
“Não a conheço, como não a conheço?”
É verdade, não conheceste a tua mãe quando ela ainda não era tua mãe.
3.
Fomos amigos.
Não amigos íntimos, mas colegas próximos no jornalismo.
O teu avô era um dos melhores, só o seu nome obrigava ao respeito que se deve aos mestres: Carlos Cáceres Monteiro que
falava de ti com imensa ternura, jurava que em bebé já eras a cara chapada da Ana.
E é verdade, mas isso sabes bem.
4.
Quero contar-te da mãe que não conheceste.
Era luminosa e eu, sempre que estava com ela, achava que podia ser tudo o que desejasse – tudo menos uma grande jornalista.
Não por falta de talento, mas pela pressão de ser filha de um monstro, de um grande repórter. Ela não era como ele, era outra coisa, muito mais da vida do que da morte, muito mais da luz das estrelas do que da sombra dos vencidos, muito mais de um mundo que ainda não chegara do que do velho mundo misógino e intelectualmente arrogante das redações.
5.
Mas ela tinha aquela coisa…
…aquela coisa bonita de desejar agradar ao pai, sendo ao mesmo tempo, e paradoxalmente, louca e livre.
Queria e não queria.
Escrevia um grande texto, mas depois desejava outras coisas, desejava apaixonar-se e viver rapidamente e não perder tempo com coisas que a puxassem para baixo e a pressionassem.
6.
Desculpa, Júlia.
O que te quero dizer é que a tua mãe podia ter sido uma grande atriz.
Podia ter sido uma enorme modelo.
Podia ter sido estrela de novelas, séries, filmes, peças de teatro.
Ter agentes aqui e no outro lado da fronteira.
A tua mãe não é apenas parecida contigo, ela eras tu sem concretizar o que foste capaz de concretizar.
Tu cumpriste-te e ainda nem sequer estás a meio da tua carreira, sabemos lá o que nos oferecerás ainda.
Mas não fizeste apenas isso.
Tu cumpriste o destino da tua mãe.
A Ana.
Um ano mais nova do que eu.
Nascida no mesmo setembro e na mesma maternidade.
Uma jornalista que podia ter sido tudo o que quisesse.
Só que estava destinada a ser tua mãe, a filha Júlia que tinha as pecinhas todas prontas para, sem ter de olhar para trás e para os lados, poder ser o que quisesse.
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