1.
É possível que o José seja o último dos últimos livreiros portugueses.
Claro que ainda existem, mas não como ele, não com a sua história.
José Antunes Ribeiro tem 83 anos. Nasceu perto de Fátima, num lugar por onde quase ninguém passava, um ermo de agricultores que sobreviviam do que a terra lhes providenciava.
Ali não se lia.
Naquela aldeia de Alburitel, colada com Toucinhos, havia trabalho de sol a sol, missa ao domingo e a convicção de que Nossa Senhora ainda apareceria aos meninos que se portassem bem.
2.
O pequeno José foi “expulso” das terras por não saber o que fazer quando lhe diziam o que fazer.
A mãe pôs-lhe um sacho nas mãos e ele, sem saber a diferença entre o chícharo e as ervas daninhas, rebentou com a plantação.
Foi remédio santo, o rapaz devia ter uma anormalidade qualquer, não sabia fazer nada, só ler os livros que lhe chegavam numa carripana da Gulbenkian.
José foi para Lisboa e encontrou-se com um destino que nunca lhe deu tréguas – quase como se estivesse sempre a fazê-lo sofrer por não ter querido ser o que lhe estava destinado.
Com pouco mais de vinte anos fundou a Ulmeiro. E naquele seu espaço encontraram-se, antes e depois de 1974, romancistas e poetas, subversivos e atores, jornalistas e pintores.
Foi ali que Mário Viegas leu o seu primeiro poema.
Era ali que António Lobo Antunes adorava ir para se perder num pó que lhe sabia pela vida.
Foi ali que nasceu a Assírio e Alvim, editora que cofundou com mais três amigos e que pretendia ser uma editora de combate contra um Estado Novo liderado por Marcelo Caetano.
3.
José Antunes Ribeiro foi sempre uma criança envelhecida.
Ou um velho muito novo.
Fortemente ingénuo.
Acreditava nas pessoas, nos livros, nos clientes e nos escritores.
Fundou a Assírio e Alvim, mas quando a coisa começou a dar, foi um bocadinho colocado à margem.
Depois fundou a Ulmeiro, teve dificuldades económicas.
Fechou a livraria, reabriu, volto a fechar e tornou a abrir.
Vendeu livros por atacado.
Tentou sobreviver a partir das redes sociais.
Juntou pessoas para o ajudarem a pensar, fez telefonemas, comprometeu-se a não desistir depois da morte de Lúcia, o amor da sua vida, a pessoa que era o seu prolongamento e vice-versa.
A Lúcia morreu-lhe.
E ele continuou mais o Salvador, o gato que vivia entre livros.
Não sei se o bicho já se finou, não o tenho visto, mas é indiferente, o Zé, o último livreiro português, continuará a resistir na sua casa de livros na Avenida do Uruguai, em Lisboa.
Com gato ou sem ele.
Mas sempre com livros empilhados noutros livros.
Um sítio de fantasmas e história, e de morte e de vida, e de literatura e pintura e de conversas que pairam naquelas paredes envelhecidas.
José Antunes Ribeiro, uma criança grande.
Ou um velho que não consegue deixar de ser o menino que destruía as colheitas com a sua falta de jeito e parecia um maluquinho à espera que a camioneta decorada com livros desse à luz no princípio de cada mês no lugar de Alburitel.
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