No ano distante de 1971, quando estreou o seu primeiro filme, Stephen Frears não esperava que o cinema lhe desse tanto ao longo de tantas décadas, resultando numa filmografia diversa, como uma daquelas caixas de biscoitos sortidos que tem de tudo um pouco, mas com algo em comum. E entre histórias policiais ou comédias do quotidiano, passando por histórias progressistas e outras baseadas em acontecimentos reais, Frears soube impor-se com uma visão singular, no cinema e na televisão.
E aos 81 anos não mostra sinais de abrandar, com novos projetos em mãos para os próximos tempos. No final de 2022 passou por Portugal, a convite do Lisbon & Sintra Film Festival, para apresentar O Rei Perdido, com Sally Hawkins e Steve Coogan, que também assina o argumento com Michael Jones e Philippa Langley.
O filme estreou há dias nos cinemas portugueses, e reconta o processo que levou à descoberta dos restos mortais de Ricardo III, que estiveram perdidos durante mais de 500 anos. E foi o pretexto para uma rápida conversa que tocou nesse e noutros marcos de mais de cinquenta anos de carreira.
O seu primeiro filme, Passos Silenciosos, estreou em 1971. Há cinquenta e dois anos, tinha alguma expetativa em relação ao que poderia vir a fazer em cinema?
Todo o meu percurso foi uma completa surpresa. Eu nunca tive a ambição de ser um realizador de cinema, mas tornei-me num (risos). E acho que é um posto muito bom. Eu não era uma daquelas pessoas que estava desesperada. Eu só queria um trabalho, queria perceber quem eu era. E depois descobri que poderia fazer filmes e ganhar a vida com eles.
Alguns dos primeiros filmes da sua carreira mostram o seu amor pelas histórias policiais e o imaginário noir. Algo que está presente em Passos Silenciosos mas também na década seguinte, com Refém de Boa Vontade e Anatomia do Golpe… e ia cruzando estes filmes com outros muito diferentes. O que é que o impulsionou nessa direcção nessa altura? Porque hoje os seus filmes são muito distantes desse universo.
Acho que foi toda uma série de filmes… de A Minha Bela Lavandaria até Anatomia do Golpe havia uma espécie de consistência temática que depois parou… eu fui trabalhar em Hollywood… não sei bem o que aconteceu, só sei que consigo perceber que deixei de fazer um certo tipo de filmes e comecei a fazer outros.
Terá sido porque, nessa altura, a sua ideia do cinema ou a sua visão do mundo mudou?
Não tenho a certeza. É claro que, quando se vai para Hollywood, é-se mais bem pago, mas ao mesmo tempo eu também estava a trabalhar na Grã-Bretanha. Fiz dois filmes irlandeses que foram muito bem recebidos… e depois fiquei na Grã-Bretanha…
Falando dos seus filmes feitos em Hollywood: O Herói Acidental já tem trinta anos e acho algo subestimado. Hoje o que acha desse filme?
Foi uma rodagem que levou cem dias. Estou a falar a sério! E durante essa produção, eu só pensava: “eu consigo fazer filmes em quarenta dias! Porque raio é que este demora tanto tempo? Eu sou a mesma pessoa!”. Mas foi aqui que as coisas correram mal. Tive um mau período nesta altura. E pensar nesse filme hoje… torna-se um choque completo! Há anos que não o vejo. Costumava passar frequentemente na televisão norte-americana, durante a quadra natalícia. É um bom filme. O estúdio achou que ia fazer muito dinheiro com ele, mas foi um fracasso completo. O mundo tinha mudado, ou o público deixou de ter paciência para o Dustin [Hoffman]. Mas eu adoro-o.
Mas o filme mantém-se muito interessante hoje.
É uma coisa maravilhosa de se ouvir (risos). O George S. Kaufman disse uma coisa terrível sobre a sátira, “satire is what closes on saturday night” [o dramaturgo sentia que, em muitas ocasiões, a sátira, já por si difícil de escrever, não era entendida ou acolhida pelo público. Na Broadway, os espetáculos estreiam à sexta feira, e “fechar ao sábado” significa uma vida muito curta para uma peça]. Não sei o que correu mal com esse filme, mas alguma coisa falhou, claramente. As expetativas do público foram descendo antes do filme estrear! Porque é que isso aconteceu? Não deixámos de ser pessoas inteligentes. Enfim, foi um desastre (risos). Por isso voltei para a Europa.
Li que está a trabalhar numa adaptação cinematográfica do romance O Sr. Wilder e Eu, de Jonathan Coe. Tenho curiosidade nessa adaptação, porque é daqueles casos em que o livro está mesmo a pedir para ser transposto para o cinema.
O livro é um retrato maravilhoso de Billy Wilder e do seu parceiro de escrita a certa altura, I.A.L. Diamond. Sim, é um dos meus próximos projetos.
O romance segue a rodagem de um dos últimos filmes de Wilder, O Segredo de Fedora. Essa fase final da sua carreira, normalmente menosprezada, também o fascina como ao Jonathan Coe?
Eu cheguei a conhecer o Billy Wilder, e sou mais velho agora do que ele era quando nos encontrámos. E acho interessante falar-se do que pode acontecer numa fase mais avançada da nossa vida.
Quando O Rei Perdido foi lançado nos cinemas britânicos, houve uma pequena controvérsia à volta de uma das personagens e das diferenças da narrativa com o que realmente aconteceu…
É claro que a Universidade de Leicester ficou desiludida com o filme, mas comportaram-se de forma especialmente estúpida (risos). Houve também um homem que estava particularmente desapontado e não sei se entretanto já lhe passou isso, mas a Universidade ficou desiludida.
Está habituado a ter esse tipo de reações aos seus filmes que são baseados em histórias verídicas?
Não, por acaso nesse campo até fui muito facilitado. É muito interessante, porque a série The Crown foi tremendamente atacada por estarem a falar da morte da Princesa Diana. Quando eu fiz um filme sobre o mesmo tema [A Rainha], ninguém disse nada… o filme até foi muito bem recebido! Fico surpreendido, mas ao mesmo tempo entendo que as pessoas tenham ficado aborrecidas com o retrato da família real que dá essa série. Como eu fui o primeiro a fazer algo semelhante, e já foi há muito tempo, consegui safar-me antes que as coisas se tornassem complicadas (risos).
Alerta Nuclear, o seu remake televisivo do filme Missão Suicida, de Sidney Lumet, é outro título que merece mais atenção. Nesta altura é ainda mais relevante.
Por acaso, nunca o vi! Nem eu nem o George Clooney [que fez parte do elenco].
Não gostou da experiência?
Nós fizemo-lo em direto. Foi live TV. E foi muito entusiasmante e prazeroso. Mas quando Stanley Kubrick fez Dr. Estranhoamor, que eu considero um excelente filme, o seu objetivo era fazer uma obra séria sobre o pânico nuclear e a guerra fria. Mas depois alguém (o Terry Southern, imagino) convenceu-o a transformar o projeto numa comédia. Mas Kubrick tentou retirar Missão Suicida dos cinemas [ambos os filmes estrearam no mesmo ano]. Queria fazê-lo desaparecer, como Estaline gostava de fazer.
Porque é a mesma história mas nesse tal tom trágico que ele abandonou…
Exatamente. Mas ele não conseguiu boicotar Missão Suicida, e eu lembro-me bem de vê-lo nos inícios da década de 60.
Qual foi a sua reação ao filme nessa altura? Ficou perturbado com o seu conteúdo?
Era uma boa história, um filme sério sobre coisas sérias. Mas hoje penso que, entre os dois filmes, o de Kubrick é o melhor. É realmente brilhante!
Porque a sátira é mais difícil que o drama?
Nem é por isso. É porque o filme funciona tão bem. Peter Sellers está excecional, assim como Sterling Hayden e todo o elenco… é mesmo um filme muito, muito bom, com excelente escrita de comédia. É sempre bom quando as pessoas conseguem fazer as coisas da melhor forma.
Fez muitos projetos para cinema e para televisão, entre minisséries e telefilmes. Nesta era em que o cinema está fragilizado, o que pensa do seu futuro?
Não sou muito otimista. O cinema está numa situação terrível. Eu agora estou a trabalhar para a HBO, que dá mais segurança… é como se uma grande nuvem não estivesse a pairar sobre a minha cabeça, o que é um alívio enorme. Mas acho que tudo o que fiz está no meu primeiro filme, Passos Silenciosos. Estou a perceber isso neste momento, ao olhar para trás… independentemente da forma como as pessoas me possam caracterizar e ao meu trabalho, tudo veio de Passos Silenciosos. Tudo estava lá desde o início. Foi um choque compreender isso. (risos)
Entrevista de Rui Alves de Sousa
A útlima edição do programa De Olhos Bem Fechados foi totalmente dedicada às bandas sonoras dos filmes de Stephen Frears.