1.
Tem trinta e poucos anos e continua a tentar todos os dias o que em criança prometeu a si própria: mudar o mundo.
A Marta Baeta é uma pessoa rara.
Há outras como ela, gente que abdica de si para iluminar os que parecem condenados a ser sombra, gente que se sacrifica, que se consome e desgasta em função dos que mais precisam.
A Marta é isso.
Uma mulher que saída da universidade em Lisboa, decidiu pegar na mochila e sair para o mundo.
2.
Filha única, nascida no Barreiro, juntou dinheiro e visitou o Brasil e a América do Sul antes de se candidatar a um voluntariado no Quénia.
Três meses de experiência em Kibera, a maior favela do mundo, maior que a maior do Brasil, maior do que possas imaginar…
… mas foi nesses arredores de Nairobi, a uns dez quilómetros da capital, com mais de meio milhão de almas que sobrevivem com quase nada, que Marta encontrou o seu destino.
Falava mal inglês, mas foi.
Nessas primeiras semanas apanhava dois autocarros e ia o resto a pé, única maneira de chegar a uma barraquinha onde dava explicações de matemática a crianças.
3.
Naqueles três meses a Marta viu o que nunca imaginara.
Gritos de crianças violentadas.
Cenas indescritíveis de violência a céu aberto.
Pessoas mortas na terra batida.
Moscas furiosas à espera da próxima vítima.
Barrigas imensas de fome.
Achou que não ia conseguir ficar três meses, mas está há doze anos.
Tantas vezes pensou voltar a Portugal, mas talvez seja demasiadamente tarde para ela. Talvez isso já não seja possível.
Construiu uma ONG a que chamou “From Kibera With Love” e mais de 60 crianças dependem da sua vontade, do seu esforço, do seu sacrifício.
Sessenta miúdos que estudam, comem e aprenderam a sonhar mesmo estando rodeados de esgotos e desesperança por todos os lados.
Mais as centenas de crianças que passaram por lá desde 2012.
Mais as crianças que foram adotadas por famílias portuguesas.
Mais as quatro adolescentes que vivem na sua casa, miúdas que foram ficando e ficando e ficando.
4.
Marta Baeta tem hoje trinta e tal anos.
Toda a sua vida adulta foi ali.
Filha única, nascida no Barreiro e inquieta por natureza.
Uma miúda inquieta desde que se lembra.
Uma miúda que vira tudo ao contrário para angariar dinheiro para as suas crianças – vende roupa, organiza jantares, inventa projetos.
Tudo em nome do palácio que fundou nos arredores do inferno.
Um paraíso afinal.
Texto e programa de Luís Osório
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