1.
A Mitra de Lisboa escondia os homens, as mulheres e as crianças que ninguém reclamava.
Gente sem família que vagueava pelas ruas, deficientes, prostitutas, bêbados, doentes mentais e bebés abandonados que cresciam ali.
Na Mitra quando se entrava já não se saia.
Rapavam-lhes o cabelo, vestiam-lhes uma farda e ninguém mais falava disso.
Era uma cidade pequena dentro da cidade grande – ali viviam, ali morriam sem nunca serem vistos.
Para o país eles e elas não existiam.
2.
No Poço do Bispo fica o lugar dos perdidos.
O lugar dos impossíveis de encontrar, o fim da linha.
O lugar de Catarina Maria que aos 23 anos ali foi parar.
Tinha défice cognitivo e numa reportagem do Expresso lemos o relatório que a acompanhava quando entrou na Mitra.
“Aleijada, pobre e anormal”.
Estava grávida de um irmão que a violou no Cercal do Alentejo.
O bebé saiu-lhe da barriga, mas não sobreviveu.
Ela sim, Catarina Maria, registada sem apelidos, sem conhecimento de quem era o pai ou a mãe, sozinha com um bebé no ventre.
3.
Entrou naquela prisão de indigentes em 1954 e morreu neste fevereiro de 2025.
Esteve 71 anos na Mitra sem nunca sair para a cidade – de vez em quando viam-na com a mão na barriga como se ainda estivesse grávida de um bebé que não chegou a ver, de vez em quando
viam-na pensativa com alguma coisa ou fixada numa boneca de pano que alguém lhe terá oferecido numa outra vida.
Como nos conta o excelente jornalista Ricardo Marques tinha o número 14 378 ao pescoço e era uma bem-disposta.
A partir de certa altura, já depois do 25 de Abril, ofereceram-lhe carta branca para ir beber um café e fumar um cigarro.
Todos gostavam da Catarina que nunca conheceu os pais.
A maluquinha da aldeia como a chamavam naquele Alentejo de planícies a perder de vista.
Maltratada pelo irmão que era a única família que conheceu, encontrada pela PSP com a barriga grande e perdida sem ter para onde ir.
Foi para o fim da linha.
Talvez no caminho do Alentejo para a Mitra tenha perguntado aos polícias para onde ia. Talvez os polícias lhe tenham dito “Lisboa”, cidade que não viria a conhecer fora dos portões do lugar que foi seu até ao fim.
Até à última bica.
E ao último cigarro que lhe soube pela vida.