1.
Guilhermina Suggia nasceu nos últimos anos do século XIX.
Os seus pais eram de Lisboa, mas ela e a única irmã, mais velha três anos, cresceram com o rio Douro, a poesia da Ribeira e os pescadores de Matosinhos.
O pai Augusto era um violoncelista competente, um professor acima de tudo – as filhas ouviam-no a praticar e muito cedo abandonaram-se à música.
Virgínia aprendeu piano.
Guilhermina, menina do papá, escolheu o violoncelo.
2.
Quando começou a tocar foi um assombro.
Era genial, carismática, graciosa, intuitiva.
Os seus recitais esgotavam e aos 17 anos já era solista na célebre Orquestra de Leipzig.
Nunca nenhum músico português fora tão predestinado, nunca nenhum viria a atingir o seu protagonismo.
3.
Guilhermina Suggia, a meio da sua adolescência, foi aluna de Pablo Casals. E uns anos mais tarde, num reencontro improvável, tornaram-se intérpretes de uma das mais famosas histórias de amor do século XX.
Pablo era uma estrela, uma das principais figuras da cultura europeia – um enorme violoncelista e um empenhado combatente do fascismo de Hitler, Mussolini e Franco.
4.
Foi um amor como nunca se tinha visto.
Os dois aplaudidos e celebrados nos principais teatros do mundo.
Os dois que se abraçavam como se o abraço fosse mais forte do que todas as ditaduras do mundo.
Os dois que recebiam artistas e se evaporavam para o quarto onde gritavam de prazer e prometiam ser um do outro até ao fim dos tempos.
Os dois que partiam a casa em discussões intermináveis.
Pablo era um animal feroz quando se desequilibrava.
Tinha ciúmes do ar que respirava Guilhermina – perseguia-a, trancava-a, escondia-lhe o violoncelo, invejava-a, batia-lhe.
A genial Guilhermina Suggia, o maior génio da música portuguesa, uma mulher forte, luminosa, uma das primeiras a conseguir impor-se como primeira figura, nunca esqueceu esse paradoxo absoluto.
Acabou, e muito bem, por o por a andar.
Mas o paradoxo ficou-lhe para sempre. O grande amor da sua vida era o mesmo que a puxava para baixo, que a desejava humilhar antes de lhe pedir desculpa num círculo repetitivo e previsível.
O grande Pablo Casals era sublime no violoncelo, sublime na paixão, sublime na esperança de absoluto, mas um bicho horrível, um homem violento, caprichoso, um canalha.
5.
Nada é linear.
Rigorosamente nada.
As sombras estão sempre à espreita.
O Mal existe sem olhar a credos, dinheiros, talentos ou ideologias.
Recordei esta história ao assistir à maravilhosa peça encenada por Rita Calçada Bastos, no Teatro Experimental de Cascais – ainda a podes ver na próxima semana.
Uma Guilhermina interpretada pela talentosa Sara Matos, a minha estrela favorita. E Pablo Casals corporizado por um Pedro Lacerda sublime.
O amor não é mesmo a preto e branco.
Como tudo o resto na vida.
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